Por: Luiz Muricy
Cardoso (*)
Lucas de Feira foi um insólito personagem de sua época. Fugitivo negro cometeu
crimes atrozes durante o Brasil Colônia e entrou para o folclore da região
sertaneja.
Feira de
Santana é a cidade mais populosa da Bahia, depois da capital, Salvador. Chamada
carinhosamente de Princesa do Sertão, boa parte de sua economia está baseada na
criação de gado. Por volta do século XIX, as culturas do fumo e do algodão
eram, além da pecuária, suas principais atividades econômicas. Ao contrário do
Recôncavo – assim chamado por rodear a Baía de Todos os Santos – cujo solo de
massapê se prestava à cultura da cana-de-açúcar, tão estreitamente vinculada à
atividade escravocrata, a cidade está numa região de transição entre o litoral
e o sertão (agreste). Foi nesse cenário um tanto inóspito, caracterizado pela
vegetação de caatinga entremeada de trechos úmidos – os brejos – que nasceu
Lucas Evangelista dos Santos, em 1807. Ele se tornaria famoso entre os escravos
que se revoltaram contra sua condição e que fugiram dos engenhos da região (a
rebeldia escrava na forma de contestação de massa foi uma constante no Brasil
Colônia). Diferentemente de Zumbi e outros que a história reverencia como
heróis, Lucas Evangelista – chamado de Lucas de Feira (ou da Feira) – não é tão
conhecido pela historiografia, muito menos tratado como personagem heroico.
Isso pelo fato de que Lucas, violento, foi um bandido que espalhou terror pelas
plagas sertanejas atacando homens de negócio, fazendeiros, caixeiros viajantes
e vaqueiros.
UM HOMEM
PERTINAZ
Carpinteiro de formação, Lucas de Feira reuniu um bando de oito criminosos,
assaltando também feiras livres, matando e seviciando. A história tem se
omitido sistematicamente a respeito dele. Porém, recentemente, a Universidade
Estadual de Feira de Santana realizou um seminário para trazer informações
sobre esse personagem. A professora Zélia Lima de Jesus escreveu a obra. A
médica Nina Rodrigues, refletindo o preconceito dominante da época, credita o
fato de Lucas ter sido mestiço a sua “superior inteligência”. Outras
informações dão conta de que ele veio de uma linhagem nobre e, se tivesse
nascido na África seria considerado rei. “Como hoje é uma figura muito badalada
por causa dos movimentos reivindicatórios afrodescendentes, é possível que
estejam comparando Lucas a Zumbi. Esse sim tinha antecedentes reais”, comenta
Franklin Machado, da Universidade Estadual de Feira de Santana.
BANDIDO CRUEL
Lucas nasceu escravo – de propriedade do padre José Alves Franco – em Belém,
perto de Cachoeira, contígua a São Félix, na fazenda Saco do Limão. Segundo as
descrições da época era “alto, espadaúdo, tinha rosto comprido, barba e olhos
grandes”. O historiador Melo Moraes Filho creditava a ele as qualidades da
gratidão e da caridade, porém, que ninguém se engane com esse perfil. Lucas de
Feira era um homem que muitas vezes tratava suas vítimas com requintes de
perversidade. Chegou a pregar o lábio de um capturado a uma árvore, prometendo
se vingar caso ainda o encontrasse ali em seu retorno. Numa ocasião, atacou uma
família, ferindo o filho, matando o pai, seviciando a filha. Chegou a
crucificar num pé de mandacaru uma virgem que se recusou a submeter-se ao
estupro. Há quem diga que Lucas formou um bando de até 30 homens, mas o mais
comum é encontrar referências de 3 a 8 componentes em sua quadrilha. O escravo
começou sua atividade criminosa com cerca de 20 anos, e nela permaneceu até
1848, quando foi preso. Seu final de vida foi sofrido. Durante o cerco que
resultou em sua prisão, foi ferido no braço esquerdo e teve que amputá-lo. “Ele
foi traído por um coiteiro chamado Cazumbá, que revelou seus principais
esconderijos”, diz Franklin. Conta-se que um escravo, tendo enfiado diversos
espinhos no braço amputado, saiu às ruas exibindo-o como troféu sobre o bandido
“que causou mal a tanta gente”. Entre homicídios e tentativas, roubos e
estupros, alguns calculam – não sem contestação – cerca de 150 os crimes de
Lucas de Feira, que foi enforcado em 25 de setembro de 1849 e morreu pedindo
perdão pelos seus crimes. Sua vida foi cantada nos versos do poema ABC de
Lucas, do oficial de justiça Souza Velho, que narra a vida do escravo sob o
ponto de vista dos senhores.
Certamente Lucas não foi um revolucionário ou herói dos escravos – na sua sanha
bandida não fazia distinção se atacava ricos, pobres, negros ou brancos,
escravos ou libertos. “É um personagem bem pouco conhecido de nossa
historiografia, até mesmo entre os baianos. É possível ainda que muitos dos
crimes atribuídos a Lucas tenham sido praticados por outros escravos que se passavam
por ele. Existem algumas obras que ajudam a desvendar o mito. Entre elas,
Lucas, o salteador, de Alberto Silva; Lucas, o demônio negro, romance de Sabino
de Campos; Flor dos Romances Trágicos, de Câmara Cascudo; A Verdadeira História
de Lucas de Feira e o espetáculo músico-teatral Escravo Lucas, o Cristo Exu da
Bahia, ambos de minha autoria”, afirma o professor Franklin Machado.
(*)
Pesquisador. Escritor.
NE: As ilustrações desta postagem fazem parte do livro "Lucas da Vila de Sant'Anna da Feira", de Marcos Franco, Marcelo Lima e Hélcio Rogério.
http://lentescangaceiras.blogspot.com.br/
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