Por: Rangel Alves da Costa(*)
“NOS
CAMINHOS DESSA VIDA, NUMA PORTA A ACOLHIDA...
O velho
viajante, num misto de mercador e ambulante, depois de muita lonjura e muito
cansaço, entrou na curva da estrada e logo avistou um casebre. Que alívio,
pensou. Talvez receba um gole d’água e uma xícara de café, e nas graças de Deus
um punhado de farinha com naco de rapadura. Disse a si mesmo já de boca
molhada.
Judiou um
pouquinho mais nos quadris do velho burro de estrada e chão, e este entendeu o
dolorido recado. Apressou o passo, olhou adiante, e também se viu de olhos mais
brilhantes e esperançosos. Talvez fosse ali, nas sombras do juazeiro defronte à
casinha, que iria descansar de tão longa viagem e de tanto peso no lombo.
Não demorou
muito e o animal riscou debaixo do sombreado. Sentiu um alívio danado quando o
seu dono pulou numa ligeireza de quase rolar por cima de espinho. E viu quando
o amigo seguiu quase correndo na direção da casinha, que continuava de porta
fechada. Mas certamente havia morador, pois se avistava uma galinha ciscando e
um cachorro magro fuçando a terra.
Diante da
porta, na esperança de todo viajante de receber acolhida, o homem bateu na
troncha e carcomida madeira, preparou o cumprimento de chegada e dobrou a mão.
Um toque, dois toques:
“Oi de casa,
oi de dentro, venho na paz do Senhor, sou um pobre viajante que roga o seu favor...”.
Silêncio
total. Mas pareceu ter ouvido um chinelar lá pelos fundos da moradia. E repetiu
o mote sertanejo de respeito e veneração diante da porta alheia:
“Senhor meu
dono da casa, não se assuste com esse irmão, sou também um conterrâneo, sou
filho desse sertão, bato na sua porta com a divina permissão...”.
E aproximou o
ouvido da madeira. Sentiu que alguém se aproximava e em seguida uma voz
feminina ecoar, resposta de velha senhora que se precavia antes de saber se
poderia atender. E disse a sertaneja:
“Se é do bem
diga a que vem. Preciso saber quem é antes de dar meu amém. Se vem na graça
divina, aqui mora a graça também...”.
Daí em diante
o diálogo se aperfeiçoou. Ele falava, ela respondia. Ele numa aflição danada
para matar a sede; ela querendo dar acolhida, porém temerosa demais por causa
da solidão.
“Senhora dona
da casa, sou vivente da estrada, vendo enfeite e pano pra criança e a meninada,
trago notícias do mundo pra quem ainda não sabe nada...”.
“Só mesmo um
pano de chita pra uma velha ficar bonita. Mas não tenho um só tostão, nada que
lhe ponha à mão, em troca de novidade, coisa nova no sertão. A pobreza me
impede de ter do buquê uma flor, mas vou lhe abrir a porta em nome do Nosso
Senhor...”.
“Senhora dona
da casa, mas que bondoso coração, ficarei agradecido se me tirar da aflição,
oferecer um gole d’água a esse cansado irmão...”.
“Gole d’água
não se nega nem que seja a inimigo, pois a sede é bicho brabo, talvez o maior
castigo. Vá entrando e se ajeite, na pobreza o seu deleite, não olhe pro que
não tem e pra velharia também, pois vivo sem ter quase nada e já no fim dessa
jornada, a última curva da estrada...”.
“Gota d’água
satisfaz, quem dera poder ter mais. Vou ficar agradecido por ser tão bem
recebido. Não se preocupe em ser pobre se tem uma alma nobre, pois a fortuna
está na paz e isso é o que satisfaz...”.
“Depois da
água um café, também ofereço um pão. Tão pouco, é quase nada, mas tudo de
coração, também a fome não espera a mesa farta de grão...”.
“Qualquer
coisa me apetece e o espírito agradece. Com a vossa permissão, mostrarei a
gratidão. Vai escolher o que quiser daquilo que eu dispuser. Escolha um corte
de pano, uma chaleira ou um abano, um espelho ou um loção, darei com
satisfação...”.
“Tudo isso eu
queria, e tudo me dá alegria. Mas eis meu mais fervor: uma imagem de Jesus, o
filho de Deus numa cruz, mas também ressurreição pra nossa vida ter luz...”.
E ganhou chita
e perfume e também um retrato emoldurado do Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao
colocar na parede de barro, os olhos da velha senhora brilhavam tanto que mais
pareciam o sol do sertão tomando a casa inteira.
Depois de
beber água de cuia, do descanso e do capim ressequido, o animal tomou o rumo da
estrada. O homem havia comido pouco, quase nada, apenas uma xícara de café com
pão, mas parecia saído do maior banquete do mundo. Estava com o espírito tomado
do maior alimento que possa existir: a felicidade.
Por isso é que
pelos sertões se diz que nos caminhos dessa vida, numa porta a acolhida.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http|://blogdomendesemendes.blogspot.com
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