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quinta-feira, 19 de setembro de 2013

MOSSORÓ, TERRA DA RESISTÊNCIA: os mecanismos discursivo-argumentativos da notícia nos jornais impressos em 1927 - Parte II

Por: Ana Shirley de Vasconcelos Oliveira Evangelista Amorim

 

3. Os jornais impressos

A presença da imprensa em Mossoró tornou-se fator decisivo. Diante disso, os relatos são atualmente conhecidos e reconhecidos como documentos comprobatórios da presença de Lampião e seu bando no nordeste brasileiro. A cidade de Mossoró, especificamente, nas primeiras décadas do século XX, já dispunha de veículos comunicacionais como os jornais: “Commercio de Mossoró”; “O Mossoroense”; “O Nordeste” e o “Correio do Povo”. Com isso, as fontes de informação desse período foram essenciais na construção semântica dos relatos sobre os acontecimentos decorrentes das ações dos cangaceiros.
Essas fontes confundiam-se com as autoridades locais, ou melhor, representavam os interesses dos governos estaduais e municipais, e dos elementos de prestígio social, industriais, comerciantes, empresários, fazendeiros, entre outros. Dessa forma, as figuras mais expoentes do poder controlavam todo o discurso veiculado pela imprensa.
A seguir, realizaremos as análises do gênero selecionado para compor o Corpus desta pesquisa.
É importante ressaltarmos que a descrição dos discursos presentes na esfera jornalística e suas abordagens far-se-ão a partir da observação dos seguintes aspectos: as técnicas argumentativas utilizadas e as correlações entre essas, suas teses, os efeitos de sentido desejados e o gênero do discurso em questão.
3.1 O discurso da Resistência na mídia impressa
A batalha de Mossoró ganhou destaque local e nacional nos noticiários da época. As manchetes dos principais jornais do Rio de Janeiro, Recife, Natal e Paraíba dedicaram-se exclusivamente ao tema. Dentre os jornais locais, a segunda edição do jornal “Correio do Povo” do dia 19 de junho de 1927, anunciava em destaque a seguinte manchete:
Notícia 1
AVÉ! MOSSORÓ! Maior grupo de cangaceiros do Nordeste, assalta nossa cidade, sendo destroçado após horas de renhida lucta! À manchete seguem-se os subtítulos: A bravura dos nossos civis! As trincheiras heróicas. Os bandidos são chefiados por LAMPEAO, SABINO, MASSILON e JARARACA. Como morreu o bandido COXÊTE e como foi ferido e aprisionado JARARACA, o maior sicário do nordeste – Notícias e notas diversas.
Após a manchete o jornal publicou em sua primeira página a seguinte notícia:
A nossa ordeira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada e assediada pelo maior numero de bandidos do nordeste, sob a chefia de Lampeao, Sabino, Massilon, Jararaca, chefes de cangaceiros que se colligaram a effeito a empreitada terrível e sinistra de saquear Mossoró, a mais opulenta e rica cidade do Rio Grande do Norte. A immensa fama e o seu amor ao trabalho, á paz e á ordem despertaram no espírito de feras daquelles bandos, apetites vorazes de sangue e de sangue.
Os seus planos miseráveis, porém, foram frustrados. A população civil em cooperação com a polícia mostrou e afirmou a pujança de um Mossoró também aguerrido e marcializado, indômito e formidável de armas na mão, nas trincheiras e nas ruas.
Exceção das famílias que foram postas em lugares seguros, os homens de valor tomaram posições de combate em todos os quatro ângulos da cidade. Era a defesa não só da potência comercial e industrial, mas, sobretudo da honra, do sagrado nome mossoroense.
Foram quatro horas de luta heróica onde se cimentou com galhardia maravilhosa o tempo sacrossanto do novo poder que se levantou com um final de glórias e louros a atestar, pelos tempos em fora, a pujança do povo de Mossoró. Triunfou o direito sobre o crime, o dever sobre a violência, a ordem sobre a desordem e o heroísmo sobre a covardia!
A honra da pacata e obreira colméia riograndense foi, salva pelo heroísmo sobre a covardia! Ave! Mossoró! (Correio do Povo, 19 de junho de 1927, p.1).
O orador estrutura seu discurso no engrandecimento e louvor aos heróis da resistência e escárnio do grupo de cangaceiros. Nessa perspectiva, o discurso relacionado à defesa da cidade centra-se integralmente em focar os esforços das autoridades, em especial, do governo estadual, e destacar, principalmente, suas ações solidárias, mostrando, assim, um governo eminentemente preocupado com a defesa do território, sendo, portanto, merecedor de eternos agradecimentos.
Enveredando pelo caráter manipulatório da mídia, que faz uso do jogo de vozes, e desse modo, joga com estereótipos e apagamentos na construção de identidades, observamos que a questão da subjetividade perpassa todo o discurso da notícia, uma vez que o contexto linguístico, como já explicitamos, direciona-se para enfatizar o dizer do poder vigente. Nesse sentido, vemos assumido explicitamente pelo jornal, o discurso político-ideológico do governo local.
Nessa perspectiva, percebemos que o jornal, veículo da mídia impressa de caráter objetivo, torna-se predominantemente subjetivo, visto que o sujeito enunciador inclui-se no discurso como membro da comunidade mossoroense.
O título da manchete chama a atenção do auditório (leitor) para que se concentre no objeto do discurso: ele orienta o „caminho‟ que o público irá percorrer no discurso. No título, o orador apresenta seu alvo de críticas: os cangaceiros, e seu alvo de devoção, a cidade, por meio do vocativo religioso “Ave, Mossoró!”, e seu povo: “A bravura dos nossos civis!”. Nessa perspectiva, constatamos que o título apresenta palavras-chave do discurso, pois, a escolha das palavras que o compõem aponta para uma construção semântico-discursiva que irá defender um ponto de vista.
O procedimento e a criação do título têm caráter persuasivo, pois aponta e contextualiza o conteúdo discursivo. Guimarães (1990), afirma que o título constitui índice caracterizador ou modalizador do objeto do discurso, ou seja, ele é um resumo mais que condensado do teor discursivo. Assim, o leitor por meio dele, prevê o tom do discurso textual.
Além disso, devemos atentar para o fato de o discurso da resistência aparecer vinculado ao discurso religioso. Percebemos que a articulação desse discurso sugere como efeito de sentido a canonização da cidade, uma vez que “Ave! Mossoró!” nos remete à concepção doutrinária do catolicismo, por meio da alusão a oração da Virgem Maria, como argumento utilizado pelo orador no reforço da tese da qualificação positiva da cidade, materialmente visível no corpo do discurso.
Para iniciar seu processo discursivo, o orador constrói nas primeiras linhas do texto o ethos da cidade, ou seja, ele cria uma imagem positiva de Mossoró com o intuito de conseguir a adesão do auditório para a tese defendida.
Ainda no que se refere ao discurso religioso, podemos estabelecer uma relação dialógica entre esse e o modo como o discurso da resistência foi empreendido pelo jornal. Quando o orador traz à cena a cidade personificada e santificada por meio da exaltação e do patriotismo, percebemos sutilmente uma relação interdiscursiva entre ambos. Mossoró sobrepõe-se a imagem da Virgem cheia de graça. Da mesma forma que Maria, a cidade mossoroense também é detentora de graças através do seu progresso. Sendo bendita entre todas as cidades do Rio Grande do Norte, assim como a santa, também gerou frutos benditos.
Embora não tenhamos realizado um trabalho de recepção junto aos leitores afetados pelos discursos dos jornais impressos e dos cordéis de acontecido, afirmamos, conforme a memória coletiva do episódio, retratada nas análises, de que o discurso religioso, adaptado às intenções comunicativas do texto, deixa transparecer mais uma estratégia argumentativa que se fundamenta nos valores da liberdade e da honra previamente aceitos pelo auditório para reforçar a necessidade de defesa do território.
Nessa rede de diálogos que o texto oferece, verificamos outra técnica encontrada na notícia e que finaliza o texto de maneira enfática, é a técnica da repetição marcada linguisticamente pelo vocativo de louvor na referência à cidade para tornar mais presente na memória dos interlocutores a ideia que se pretende a adesão. Nesse caso, “[...] A repetição constitui a técnica mais simples para criar tal presença (no leitor) do ponto de que se quer chamar a atenção” (PERELMAN E TYTECA, 1996, p. 164). A utilização dessa técnica torna claro, também, para o público, o posicionamento assumido pelo produtor da notícia.
Notícia 2
A edição do jornal “O Nordeste” do dia 24 de junho de 1927, veiculou a seguinte manchete:
O bandido Lampeão e seu grupo: Terríveis contingencias – Assalto a esta cidade – A nossa vitória – Continuamos em pé de guerra – Lampeão derrotado.
Essa edição começou a noticiar os preparativos para o conflito. Ao longo do texto, em especial, por narrar o conflito, encontramos pequenas manchetes que apareciam como uma espécie de alusão a notícia principal: “Os bandidos surgem em São Sebastião”; “Retiradas das famílias. O povo se arma”; “Ultimatum, de Lampeão ao governo do município”; “O bando se aproxima...”, e, somente na terceira página do jornal vem a narração do conflito.
Começa a lucta
Foi um tiroteio formidável de parte a parte! As feras investiam e procuravam abri passagem. As trincheiras avançadas resistiam galhardamente. A do Coronel Saboynha, para não nos referirmos já a outras, de acção igualmente brilhante, por terem aquellas sustentados o ímpeto, desempenhavam-se galhardamente. A trincheira da barragem, sob o commando do Tenente Abdom, abria fogo. O bando se tinha dividido. Era preciso estar em toda parte, vigilante, activo, embora corresse perigo a vida, que poderia ser atingida pelo fogo dos nossos próprios amigos.
Cangaceiros surgem ao lado da Matriz, nas immediações do Telégrafo Nacional, e somem-se! Ah! O fogo rompeu pela trincheira dessa repartição. A torre attendia já a todos os lados,
perscrutando, atirando. A trincheira do Colégio Diocesano estava a postos, tiroteando também. A praça da matriz era uma fortaleza!
Os officiaes da Polícia Estadual, Tenente Laurentino, delegado de Polícia, Abdon Nunes e Ten. João Antunes, da cavallaria, eram incansáveis e bravos, attendendo aos postos mais fracos organisando a vigilância, patrulhando e Policiando as ruas, no intuito de sorprehender algum bandido que se insinuasse nos locaes mais desertos.
Há actos de verdadeira temeridade em toda parte, os quaes calamos para não commetter injustiças. Todos se mostram valorosos e dignos grandes e pequenos, ricos e pobres, autoridades e não autoridades. Os padres acompanham o movimento de defeza com extraordinário sangue frio.
Em toda parte, por todos os lados, todos andavam activos. Os bandidos recuavam, voltam ousadamente à carga e são novamente repellidos. Deixam mortos e feridos e organizam a fuga. É de notar que, no início do ataque, as sombras do nevoeiros se desfazem e a chuva cessa apenas deixando no ambiente uma temperatura agradável de uma tarde de inverno. Cessado o forte tiroteio, irrompe pelas ruas, o povo em delirantes brados de vivas a Mossoró, ao Prefeito, ao Presidente do Estado, ao chefe de Polícia, aos nossos soldados, desafiando Lampeão e os seus sequases: Sabino, Massilon e toda caterva de bandidos que fugiam diante de nossas armas victoriosas, sem o derrame de uma só gotta de sangue do povo citadino.
Reinava grande pavor entre algumas poucas famílias que não se haviam retirado: mas o estrépito dos vivas penetrava o coração de todos como um ardente sopro de victalidade inaudita. Gloria a terra de Baraúna, o herói de Payssandú! Toda a noite de segunda-feira foi de febril actividade; tiroteios aqui e acolá, descargas, etc. Foi uma hora de fogo renhido e cerrado!
Tendo em vista que “as notícias são distorções sistemáticas que servem os interesses políticos de agentes sociais bem específicos que utilizam as notícias na projeção da sua visão de mundo, da sociedade, etc” (TRAQUINA, 2005, p. 162), observamos que a notícia publicada pelo jornal é explicitamente marcada por informações que trazem em sua constituição elementos sígnicos (recursos) que representam um meio de manutenção do discurso político-social dominante. A subjetividade, como explicitada na primeira notícia analisada, permeia todo o discurso.
Nessa notícia, o sujeito enunciador ao afirmar que os “bandidos fugiam diante de nossas armas vitoriosas”, se inclui no discurso como um personagem pertencente ao universo narrado, ou melhor, ele se insere na população que lutou na resistência contra bando de Lampião.
Desse modo, podemos dizer que, de acordo com o ângulo em que a notícia é revelada ao auditório, observamos a semelhança entre a sua estrutura e a estrutura dos editoriais jornalísticos, notadamente, no que concerne à tomada explícita de posição sobre um determinado acontecimento. A narrativa do conflito, assim como os editoriais vem sem a presença de uma assinatura, expressando o ponto de vista do periódico, e “sem a obrigação de se ater a nenhuma imparcialidade ou objetividade” (PERFEITO, 2007, p.4).
O enunciador inicia seu discurso a partir da apresentação do assunto (começa a lucta) expondo fatos que descrevem a realidade do conflito sob sua ótica. A sequência de eventos que compõe o gênero notícia apresenta a história em forma de lide1, isto é, procura desenvolver os elementos do relato, colocando em ordem os elementos do enunciado (o que, quem, onde, quando, como e por que). Em contrapartida, observamos uma exploração do
1 Palavra aportuguesada do inglês Lead é a “cabeça” da notícia. Significa dizer que, o lide funciona como um sumário da notícia jornalística apontando as informações mais importantes do texto. O lide corresponde ao primeiro parágrafo de uma notícia jornalística impressa.
conflito dramático. A relação entre as personagens, as enumerações de lugares e de ações da trama conferem a narrativa uma leitura de construção artística, atribuindo ao discurso um caráter literário.
No âmbito da argumentação, destacamos no discurso a presença de recursos, como os modalizadores, por exemplo, que direcionam o posicionamento do enunciador a respeito do fato enunciado. Os modalizadores, segundo Koch (1999), apresentam argumentatividade no uso da própria língua. Desse modo, concebemos esses tipos de recursos como “elementos linguísticos ligados diretamente ao evento de produção do enunciado e que funcionam como indicadores de sentimentos e atitudes do locutor em relação ao seu discurso” (KOCH, 1999, p. 138). Como exemplo desses recursos, encontramos na notícia os pronomes na primeira pessoa do plural, os advérbios, os adjetivos e expressões com valor de adjetivos.
No que diz respeito aos adjetivos ou expressões com valor de adjetivo, podemos dizer que eles são extremamente modalizadores, pois qualificam verbalmente o que às vezes é apenas uma imagem, formalizando um conceito de verdade, dando um valor apreciativo ou depreciativo.
Com o uso desses qualificadores, o orador passa a indicar um modo de ser do substantivo, atuando como um predicativo. Nesse processo, os recursos trabalhados operam no sentido de atribuir um significado semântico determinado aos substantivos, “cidade e povo”. No viés discursivo, o uso desse mecanismo opera como estratégia argumentativa que ultrapassa as fronteiras da estrutura sintática e do significado semântico e articula os sentidos em um campo que interagem linguagem e sociedade, portanto, ideologias.
A exarcebação e sacralização da cidade e de seus heróis implicam na satanização da figura de Lampião e seu bando. Paralelamente, a exaltação da cidade e de seus defensores. Os textos acentuam as características e feitos mais brutais dos cangaceiros, com o intuito de associá-los à categoria do mal, da perversão, o que de fato culmina na demonização desses personagens.
Nessa perspectiva, atrelada aos modalizadores está à técnica da definição expressiva para embasar a posição ideológica do orador a favor da resistência e contra a empreitada do bando de cangaceiros. O sujeito enuncia de uma formação discursiva e de um lugar social de defensor da cidade.
Além disso, devemos atentar que a associação do fato (invasão) a ação da resistência em (a), nas primeiras linhas do texto, gera frames (esquemas) que irão orientar a construção dos modelos mentais a partir do foco de interesse do enunciador e de que ângulo ele quer que observemos o objeto, direcionando a opinião pública para um posicionamento contrário à invasão e favorável à resistência.

CONTINUA...

Ana Shirley de Vasconcelos Oliveira Evangelista Amorim

Enviado pelo pesquisador José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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