Por: Ana
Shirley de Vasconcelos Oliveira Evangelista Amorim
3. Os jornais
impressos
A presença da
imprensa em Mossoró tornou-se fator decisivo. Diante disso, os relatos são
atualmente conhecidos e reconhecidos como documentos comprobatórios da presença
de Lampião e seu bando no nordeste brasileiro. A cidade de Mossoró,
especificamente, nas primeiras décadas do século XX, já dispunha de veículos
comunicacionais como os jornais: “Commercio de Mossoró”; “O Mossoroense”; “O
Nordeste” e o “Correio do Povo”. Com isso, as fontes de informação desse
período foram essenciais na construção semântica dos relatos sobre os
acontecimentos decorrentes das ações dos cangaceiros.
Essas fontes
confundiam-se com as autoridades locais, ou melhor, representavam os interesses
dos governos estaduais e municipais, e dos elementos de prestígio social,
industriais, comerciantes, empresários, fazendeiros, entre outros. Dessa forma,
as figuras mais expoentes do poder controlavam todo o discurso veiculado pela
imprensa.
A seguir,
realizaremos as análises do gênero selecionado para compor o Corpus desta
pesquisa.
É importante
ressaltarmos que a descrição dos discursos presentes na esfera jornalística e
suas abordagens far-se-ão a partir da observação dos seguintes aspectos: as
técnicas argumentativas utilizadas e as correlações entre essas, suas teses, os
efeitos de sentido desejados e o gênero do discurso em questão.
3.1 O discurso
da Resistência na mídia impressa
A batalha de
Mossoró ganhou destaque local e nacional nos noticiários da época. As manchetes
dos principais jornais do Rio de Janeiro, Recife, Natal e Paraíba dedicaram-se
exclusivamente ao tema. Dentre os jornais locais, a segunda edição do jornal
“Correio do Povo” do dia 19 de junho de 1927, anunciava em destaque a seguinte
manchete:
Notícia 1
AVÉ! MOSSORÓ!
Maior grupo de cangaceiros do Nordeste, assalta nossa cidade, sendo destroçado
após horas de renhida lucta! À manchete seguem-se os subtítulos: A bravura dos
nossos civis! As trincheiras heróicas. Os bandidos são chefiados por LAMPEAO,
SABINO, MASSILON e JARARACA. Como morreu o bandido COXÊTE e como foi ferido e
aprisionado JARARACA, o maior sicário do nordeste – Notícias e notas diversas.
Após a
manchete o jornal publicou em sua primeira página a seguinte notícia:
A nossa
ordeira, pacata, laboriosa e nobre cidade foi atacada e assediada pelo maior
numero de bandidos do nordeste, sob a chefia de Lampeao, Sabino, Massilon,
Jararaca, chefes de cangaceiros que se colligaram a effeito a empreitada
terrível e sinistra de saquear Mossoró, a mais opulenta e rica cidade do Rio
Grande do Norte. A immensa fama e o seu amor ao trabalho, á paz e á ordem
despertaram no espírito de feras daquelles bandos, apetites vorazes de sangue e
de sangue.
Os seus planos
miseráveis, porém, foram frustrados. A população civil em cooperação com a
polícia mostrou e afirmou a pujança de um Mossoró também aguerrido e
marcializado, indômito e formidável de armas na mão, nas trincheiras e nas
ruas.
Exceção das
famílias que foram postas em lugares seguros, os homens de valor tomaram
posições de combate em todos os quatro ângulos da cidade. Era a defesa não só
da potência comercial e industrial, mas, sobretudo da honra, do sagrado nome
mossoroense.
Foram quatro
horas de luta heróica onde se cimentou com galhardia maravilhosa o tempo
sacrossanto do novo poder que se levantou com um final de glórias e louros a
atestar, pelos tempos em fora, a pujança do povo de Mossoró. Triunfou o direito
sobre o crime, o dever sobre a violência, a ordem sobre a desordem e o heroísmo
sobre a covardia!
A honra da
pacata e obreira colméia riograndense foi, salva pelo heroísmo sobre a
covardia! Ave! Mossoró! (Correio do Povo, 19 de junho de 1927, p.1).
O orador
estrutura seu discurso no engrandecimento e louvor aos heróis da resistência e
escárnio do grupo de cangaceiros. Nessa perspectiva, o discurso relacionado à
defesa da cidade centra-se integralmente em focar os esforços das autoridades,
em especial, do governo estadual, e destacar, principalmente, suas ações
solidárias, mostrando, assim, um governo eminentemente preocupado com a defesa
do território, sendo, portanto, merecedor de eternos agradecimentos.
Enveredando
pelo caráter manipulatório da mídia, que faz uso do jogo de vozes, e desse
modo, joga com estereótipos e apagamentos na construção de identidades,
observamos que a questão da subjetividade perpassa todo o discurso da notícia,
uma vez que o contexto linguístico, como já explicitamos, direciona-se para
enfatizar o dizer do poder vigente. Nesse sentido, vemos assumido
explicitamente pelo jornal, o discurso político-ideológico do governo local.
Nessa
perspectiva, percebemos que o jornal, veículo da mídia impressa de caráter
objetivo, torna-se predominantemente subjetivo, visto que o sujeito enunciador
inclui-se no discurso como membro da comunidade mossoroense.
O título da
manchete chama a atenção do auditório (leitor) para que se concentre no objeto
do discurso: ele orienta o „caminho‟ que o público irá percorrer no discurso.
No título, o orador apresenta seu alvo de críticas: os cangaceiros, e seu alvo
de devoção, a cidade, por meio do vocativo religioso “Ave, Mossoró!”, e seu
povo: “A bravura dos nossos civis!”. Nessa perspectiva, constatamos que o
título apresenta palavras-chave do discurso, pois, a escolha das palavras que o
compõem aponta para uma construção semântico-discursiva que irá defender um
ponto de vista.
O procedimento
e a criação do título têm caráter persuasivo, pois aponta e contextualiza o
conteúdo discursivo. Guimarães (1990), afirma que o título constitui índice
caracterizador ou modalizador do objeto do discurso, ou seja, ele é um resumo
mais que condensado do teor discursivo. Assim, o leitor por meio dele, prevê o
tom do discurso textual.
Além disso,
devemos atentar para o fato de o discurso da resistência aparecer vinculado ao
discurso religioso. Percebemos que a articulação desse discurso sugere como
efeito de sentido a canonização da cidade, uma vez que “Ave! Mossoró!” nos
remete à concepção doutrinária do catolicismo, por meio da alusão a oração da
Virgem Maria, como argumento utilizado pelo orador no reforço da tese da
qualificação positiva da cidade, materialmente visível no corpo do discurso.
Para iniciar
seu processo discursivo, o orador constrói nas primeiras linhas do texto o
ethos da cidade, ou seja, ele cria uma imagem positiva de Mossoró com o intuito
de conseguir a adesão do auditório para a tese defendida.
Ainda no que
se refere ao discurso religioso, podemos estabelecer uma relação dialógica
entre esse e o modo como o discurso da resistência foi empreendido pelo jornal.
Quando o orador traz à cena a cidade personificada e santificada por meio da
exaltação e do patriotismo, percebemos sutilmente uma relação interdiscursiva
entre ambos. Mossoró sobrepõe-se a imagem da Virgem cheia de graça. Da mesma
forma que Maria, a cidade mossoroense também é detentora de graças através do
seu progresso. Sendo bendita entre todas as cidades do Rio Grande do Norte,
assim como a santa, também gerou frutos benditos.
Embora não
tenhamos realizado um trabalho de recepção junto aos leitores afetados pelos
discursos dos jornais impressos e dos cordéis de acontecido, afirmamos,
conforme a memória coletiva do episódio, retratada nas análises, de que o
discurso religioso, adaptado às intenções comunicativas do texto, deixa
transparecer mais uma estratégia argumentativa que se fundamenta nos valores da
liberdade e da honra previamente aceitos pelo auditório para reforçar a
necessidade de defesa do território.
Nessa rede de
diálogos que o texto oferece, verificamos outra técnica encontrada na notícia e
que finaliza o texto de maneira enfática, é a técnica da repetição marcada
linguisticamente pelo vocativo de louvor na referência à cidade para tornar
mais presente na memória dos interlocutores a ideia que se pretende a adesão.
Nesse caso, “[...] A repetição constitui a técnica mais simples para criar tal
presença (no leitor) do ponto de que se quer chamar a atenção” (PERELMAN E
TYTECA, 1996, p. 164). A utilização dessa técnica torna claro, também, para o
público, o posicionamento assumido pelo produtor da notícia.
Notícia 2
A edição do
jornal “O Nordeste” do dia 24 de junho de 1927, veiculou a seguinte manchete:
O bandido
Lampeão e seu grupo: Terríveis contingencias – Assalto a esta cidade – A nossa
vitória – Continuamos em pé de guerra – Lampeão derrotado.
Essa edição
começou a noticiar os preparativos para o conflito. Ao longo do texto, em
especial, por narrar o conflito, encontramos pequenas manchetes que apareciam
como uma espécie de alusão a notícia principal: “Os bandidos surgem em São
Sebastião”; “Retiradas das famílias. O povo se arma”; “Ultimatum, de Lampeão ao
governo do município”; “O bando se aproxima...”, e, somente na terceira página
do jornal vem a narração do conflito.
Começa a lucta
Foi um
tiroteio formidável de parte a parte! As feras investiam e procuravam abri
passagem. As trincheiras avançadas resistiam galhardamente. A do Coronel
Saboynha, para não nos referirmos já a outras, de acção igualmente brilhante,
por terem aquellas sustentados o ímpeto, desempenhavam-se galhardamente. A trincheira
da barragem, sob o commando do Tenente Abdom, abria fogo. O bando se tinha
dividido. Era preciso estar em toda parte, vigilante, activo, embora corresse
perigo a vida, que poderia ser atingida pelo fogo dos nossos próprios amigos.
Cangaceiros
surgem ao lado da Matriz, nas immediações do Telégrafo Nacional, e somem-se!
Ah! O fogo rompeu pela trincheira dessa repartição. A torre attendia já a todos
os lados,
perscrutando,
atirando. A trincheira do Colégio Diocesano estava a postos, tiroteando também.
A praça da matriz era uma fortaleza!
Os officiaes
da Polícia Estadual, Tenente Laurentino, delegado de Polícia, Abdon Nunes e
Ten. João Antunes, da cavallaria, eram incansáveis e bravos, attendendo aos
postos mais fracos organisando a vigilância, patrulhando e Policiando as ruas,
no intuito de sorprehender algum bandido que se insinuasse nos locaes mais
desertos.
Há actos de
verdadeira temeridade em toda parte, os quaes calamos para não commetter
injustiças. Todos se mostram valorosos e dignos grandes e pequenos, ricos e
pobres, autoridades e não autoridades. Os padres acompanham o movimento de
defeza com extraordinário sangue frio.
Em toda parte,
por todos os lados, todos andavam activos. Os bandidos recuavam, voltam
ousadamente à carga e são novamente repellidos. Deixam mortos e feridos e
organizam a fuga. É de notar que, no início do ataque, as sombras do nevoeiros
se desfazem e a chuva cessa apenas deixando no ambiente uma temperatura
agradável de uma tarde de inverno. Cessado o forte tiroteio, irrompe pelas
ruas, o povo em delirantes brados de vivas a Mossoró, ao Prefeito, ao
Presidente do Estado, ao chefe de Polícia, aos nossos soldados, desafiando
Lampeão e os seus sequases: Sabino, Massilon e toda caterva de bandidos que
fugiam diante de nossas armas victoriosas, sem o derrame de uma só gotta de
sangue do povo citadino.
Reinava grande
pavor entre algumas poucas famílias que não se haviam retirado: mas o estrépito
dos vivas penetrava o coração de todos como um ardente sopro de victalidade
inaudita. Gloria a terra de Baraúna, o herói de Payssandú! Toda a noite de
segunda-feira foi de febril actividade; tiroteios aqui e acolá, descargas, etc.
Foi uma hora de fogo renhido e cerrado!
Tendo em vista
que “as notícias são distorções sistemáticas que servem os interesses políticos
de agentes sociais bem específicos que utilizam as notícias na projeção da sua
visão de mundo, da sociedade, etc” (TRAQUINA, 2005, p. 162), observamos que a
notícia publicada pelo jornal é explicitamente marcada por informações que
trazem em sua constituição elementos sígnicos (recursos) que representam um
meio de manutenção do discurso político-social dominante. A subjetividade, como
explicitada na primeira notícia analisada, permeia todo o discurso.
Nessa notícia,
o sujeito enunciador ao afirmar que os “bandidos fugiam diante de nossas armas
vitoriosas”, se inclui no discurso como um personagem pertencente ao universo
narrado, ou melhor, ele se insere na população que lutou na resistência contra
bando de Lampião.
Desse modo,
podemos dizer que, de acordo com o ângulo em que a notícia é revelada ao
auditório, observamos a semelhança entre a sua estrutura e a estrutura dos
editoriais jornalísticos, notadamente, no que concerne à tomada explícita de
posição sobre um determinado acontecimento. A narrativa do conflito, assim como
os editoriais vem sem a presença de uma assinatura, expressando o ponto de
vista do periódico, e “sem a obrigação de se ater a nenhuma imparcialidade ou
objetividade” (PERFEITO, 2007, p.4).
O enunciador
inicia seu discurso a partir da apresentação do assunto (começa a lucta)
expondo fatos que descrevem a realidade do conflito sob sua ótica. A sequência
de eventos que compõe o gênero notícia apresenta a história em forma de lide1,
isto é, procura desenvolver os elementos do relato, colocando em ordem os
elementos do enunciado (o que, quem, onde, quando, como e por que). Em
contrapartida, observamos uma exploração do
1 Palavra
aportuguesada do inglês Lead é a “cabeça” da notícia. Significa dizer que, o
lide funciona como um sumário da notícia jornalística apontando as informações
mais importantes do texto. O lide corresponde ao primeiro parágrafo de uma
notícia jornalística impressa.
conflito
dramático. A relação entre as personagens, as enumerações de lugares e de ações
da trama conferem a narrativa uma leitura de construção artística, atribuindo
ao discurso um caráter literário.
No âmbito da
argumentação, destacamos no discurso a presença de recursos, como os
modalizadores, por exemplo, que direcionam o posicionamento do enunciador a
respeito do fato enunciado. Os modalizadores, segundo Koch (1999), apresentam
argumentatividade no uso da própria língua. Desse modo, concebemos esses tipos
de recursos como “elementos linguísticos ligados diretamente ao evento de produção
do enunciado e que funcionam como indicadores de sentimentos e atitudes do
locutor em relação ao seu discurso” (KOCH, 1999, p. 138). Como exemplo desses
recursos, encontramos na notícia os pronomes na primeira pessoa do plural, os
advérbios, os adjetivos e expressões com valor de adjetivos.
No que diz
respeito aos adjetivos ou expressões com valor de adjetivo, podemos dizer que
eles são extremamente modalizadores, pois qualificam verbalmente o que às vezes
é apenas uma imagem, formalizando um conceito de verdade, dando um valor
apreciativo ou depreciativo.
Com o uso
desses qualificadores, o orador passa a indicar um modo de ser do substantivo,
atuando como um predicativo. Nesse processo, os recursos trabalhados operam no
sentido de atribuir um significado semântico determinado aos substantivos,
“cidade e povo”. No viés discursivo, o uso desse mecanismo opera como
estratégia argumentativa que ultrapassa as fronteiras da estrutura sintática e
do significado semântico e articula os sentidos em um campo que interagem
linguagem e sociedade, portanto, ideologias.
A exarcebação
e sacralização da cidade e de seus heróis implicam na satanização da figura de
Lampião e seu bando. Paralelamente, a exaltação da cidade e de seus defensores.
Os textos acentuam as características e feitos mais brutais dos cangaceiros,
com o intuito de associá-los à categoria do mal, da perversão, o que de fato
culmina na demonização desses personagens.
Nessa
perspectiva, atrelada aos modalizadores está à técnica da definição expressiva
para embasar a posição ideológica do orador a favor da resistência e contra a
empreitada do bando de cangaceiros. O sujeito enuncia de uma formação
discursiva e de um lugar social de defensor da cidade.
Além disso,
devemos atentar que a associação do fato (invasão) a ação da resistência em
(a), nas primeiras linhas do texto, gera frames (esquemas) que irão orientar a
construção dos modelos mentais a partir do foco de interesse do enunciador e de
que ângulo ele quer que observemos o objeto, direcionando a opinião pública
para um posicionamento contrário à invasão e favorável à resistência.
CONTINUA...
Ana Shirley de
Vasconcelos Oliveira Evangelista Amorim
Enviado pelo
pesquisador José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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