Texto de Raul
Meneleu Mascarenhas
A marcha
estava sendo exaustiva e o calor vindo por cima e exalando quentura por baixo
fazia os cabras vez em quando cambalearem como mamulengos. Não dava para parar,
as volantes com cabras dispostos, todos bem municiados, estavam quase em cima
deles. E outra..., parar onde? Só o que se via eram pedras e areia misturados
com aquelas hastes espinhosas dos mandacarus, apontando para o céu
onde não se via nuvens. Só não dava pra ver os inimigos por causa do emaranhado
de galhos secos e de vez em quando um pezinho minrrado e desfolhado de umbu.
As alpercatas
de Lampião, ardiam como fogo e quando olhava para os pés, via-os latejantes
querendo saltar fora do couro da “precata”. Já não tinham água para aplacar a
sede. E essa era combatida com pequenos pedaços de rapadura, que encontravam
perdidos nos fundo do embornais. Vinham de longe, vagueando por aquelas regiões
inóspitas, varrendo a terra como se vento fosse, e trazendo desolação pior que
a seca do sertão.
Eram cachorros
enlouquecidos, mas não ganiam, pois não queria chamar a atenção dos inimigos.
Mas ai daquele que passasse na frente daquela matilha ensandecida. Com olhos
injetados pelo sangue que subia às suas cabeças e que misturavam-se aos grãos
de terra levantados em poeira naquela desembalada carreira. Mesmo assim com
espantosa vivacidade e agilidade, encobriam seus rastros, evitando o faro de
hiena dos rastreadores, que a soldadesca “emburacava” atrás para lançarem seu
ataque mortífero.
Era um
rastejar permanente daquele grupo comandado por Lampião. Assim como também era
permanente o rastrear das volantes e seus valentes. Todos eles eram uma mistura
provinda do mesmo caldo social estabelecido nos sertões nordestinos. Eram
homens que no combate, se devoravam, entre as pedras e areias da caatinga.
Lampião e seu bando, eram serpentes mortíferas, sibilando horrendamente e
vez em quando atacando os endinheirados do sertão, abocanhando como
áspides e derramando o veneno da morte e da destruição.
A noite já
vinha chegando. Da quentura do dia, o sertão vira gelo na noite. Com as bocas
ressequidas, Lampião e seus cangaceiros voavam no sereno, e procurando abrir as
bocas nessa desembalada retirada, tentando sorver o orvalho que começara a
descer como tênue manto de frescor. Mas a sede era maior que todo aquele
sertão. Aliado a isso, a fome já também fazia-se surgir nas entranhas de cada
um deles.
Mas com o
avançar da noite, começaram a relaxar seus membros e articulações fatigados, e
deixavam-se esmorecer e a pisar mais macio. O perigo tinha ficado pra trás,
pensavam eles. A friagem da noite emanava seu alívio, com ventos frios e
entorpecentes, que não deixavam de ser também um problema. Lá pras tantas,
desse sertão sem lua, avistaram uma pequena luz bruxuleante. Era um desses
casebres perdidos no meio do mato, isolado naquela triste paisagem. Bem que
poderia ser um fugitivo da justiça, assim como eles pois desse tipo, o sertão
com seus poderosos homens distintos, fabricavam constantemente da noite para o
dia ou do dia pra noite.
Ao
aproximarem-se, viram que se tratava de uma pequena cabana de pau a pique, onde
via-se pelos buracos existentes entre o barro e as ripas, as chamas de uma
lamparina dançar pelo efeito da aragem que zunia dentro do pequeno terreiro.
Será que ali teriam pelo menos água? Aproximaram-se como onças para dar o bote,
cautelosamente e silenciosos como os felinos fazem ao aproximarem-se de suas
presas. Não pensavam em mais nada a não ser em água que lhes mataria a
sede. Lampião bateu levemente na porta, como se a acariciasse, dizendo: -
Ô de casa... - A resposta não foi imediata. Insistiu... – Ô de dentro... –
maior silêncio... – O bando aguardava. E Lampião pela terceira vez, rompeu a
mudez emanada da rústica morada, gritando: Quem está ai dentro?
Então uma voz
fantasmagórica, mas humana, debilmente sussurrou um já vai, espere ai, já vai,
de forma tão sofrida que os cangaceiros estremecidos pela sede, já não
lembravam dela. A lamparina moveu-se, a porta foi aberta por um vulto, como se
fosse uma alma de outro mundo, talvez comparado até mesmo com a Morte, pois
usava um capuz característico para esconder seu rosto; faltava apenas a foice,
que fora substituída pelo fogo no pavio do bico de luz. - Que desejam a estas
horas da noite? Lampião respondeu que apenas queriam um pouco de água para
matar a sede dele e de seus homens. O bando todo, já tinha se chegado mais pra
perto, curiosos em ver aquela cena que jamais nenhum deles esqueceria. O vulto
encapuzado, escondendo sua face, balbuciou num murmúrio: Querem água...
Eu me chamo
Virgulino Ferreira, conhecido como Lampião e estou vindo em paz pois apenas
queremos matar a sede. O homem retrocedendo e abrindo passagem para Lampião e
os seus, que entraram no casebre que mal cabia todos, viram sentados no chão,
por cima de um resto de esteira e panos maltrapilhos, uma mulher com dois
filhos, que ergueu-se e perguntou ao marido quem eram. Este respondendo
disse-lhe que era Lampião e sua gente, de passagem e com sede. As crianças com
medo, apertavam-se uma a outra, e a mulher disse para o marido que Lampião não
deveria beber daquela água que eles tinham. E que se eles soubessem, não
deveriam nem ter entrado na cabana.
Lampião com
altivez disse-lhes que queria apenas água e não queria fazer mal a ninguém. O
homem encapuzado com bastante jeito fez ver a Virgulino que eles tinham água,
mas por conta de uma doença que tinha e que tinha sido escorraçado de sua
cidade e vivia agora no mato não seria bom que bebessem. A doença era a lepra.
Deixando cair o capuz, aquela pobre alma mostrou-lhes o rosto, onde parte dele
estava carcomido pela doença.
O bando recuou
amedrontado e deixou Lampião sozinho, e ele calado, imóvel, fitou aquele ser
torturado e disse não saber de tão grande desgraça e que se soubesse não teria
pisado naquelas brenhas perdidas. Perguntou se fazia muito tempo da doença e o
homem respondeu-lhe que sim. - E a mulher e as crianças, por que aqui ficaram?
Perguntou Virgulino. E o pobre Lazarento, quase chorando de sua dor física e
d’alma respondeu-lhe que ela não o tinha abandonado e que mesmo assim ele não
teria para onde mandar seus filhos.
Aqui
encontramos a outra face do violento e destemido Rei dos Cangaceiros. A
misericórdia rugiu forte em seu coração e ele saindo da cabana chamou um de
seus cabras, que veio cauteloso de medo. Lampião retirando duas cédulas que
passou à mulher dizendo: Prepare os meninos agora mesmo, que eles vão ser
entregues ao meu padrinho no Juazeiro. E olhando para o cangaceiro, disse-lhe
que levasse aquelas duas inocentes almas à casa do padre Cícero, lá no Ceará. E
embrenhou-se novamente com seu bando, noite a dentro, sem tocar no pote e nem
na caneca d’água do leproso. Nessa retirada, não comportava seu grito de guerra
"Mulher Rendeira".
Essa é uma das estórias que encontramos quando nos aprofundamos na vida e nos
atos da história de Lampião, O Rei do Cangaço, - ( Lampião - Nertan Macêdo -
pgs 72-73) que em um episódio como esse, mostrava sua outra face, como que
querendo redimir-se perante o criador. Imitava ao filho de Deus, mal comparando
como se diz no sertão. Não curava, mas ajudava os cegos, aleijados e outros que
tinham doenças terríveis como a lepra. Tudo dependia de sua outra face.
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