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sábado, 7 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 13/11/1958 - Capítulo IX

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
O cangaceiro Volta Seca

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

O BANDO SABIA ADMIRAR OS CORAJOSOS

Com Valentia Tudo é Possível – A Bravura Diante da Morte Salvou o Coronel Nunes – A Simpatia do Bando – Lampião Curva-se à Vontade do Bando.

SÓ QUEM viveu num bando de cangaceiros pode saber como é diferente aquela vida. Se hoje um está vivo, amanhã pode estar morto, tanto pela volante como pelos próprios companheiros. Tudo é incerto, muito embora existam amizades fortes em grupinhos. Pena que elas não durem, pois de combate em combate os próprios grupinhos vão-se findando, um a um.

Não é uma vida civilizada, porém. Os predicados, especialmente os morais, para serem ali aceitos, necessitam de certas restrições, e o maior predicado que um homem pode ter entre cangaceiros é ser valente. Com valentia tudo é possível, até a admiração ou a inveja do bando inteiro.

A respeito de valentia, contarei um dos casos mais curiosos que presenciei na minha vida de cangaceiro. Antes, porém, vai bem uma explicação. Até aqui os leitores não têm lido “maldades” praticadas por mim. Não sei se os decepciono, o fato é que não procuro passar por santo no meio de tantos demônios. Tive meus erros, e os leitores puderam ver como ingressei no cangaço. Naquelas condições, eu não poderia ter dado boa coisa, mas faço questão de deixar claro: se não fui dos melhores, o pior não fui. A rigor, mesmo, fui um cangaceiro, e acho que basta. Conjuguei o verbo matar em alguns tempos, mas houve ocasiões em que fui bom. Quero dizer, que me julguei bom, pois até hoje, calmo e civilizado, a minha consciência, quando se recorda desses momentos, alivia-se um pouquinho. Uma dessas ocasiões vale a pena recordar, pois está ligada ao início deste capítulo.

A CORAGEM DO CORONEL

O BANDO encontrava-se pelo interior de Alagoas, e, sem que eu soubesse como, fomos bater numa fazenda. Era uma dessas florescentes propriedades muito comuns no interior nordestino. A memória me trai quando procuro recordar-me do nome do local e mesmo como fomos parar naquelas bandas. Mas a verdade é que quem sabia de tudo era Lampião, e eu, naquela época, com pouco mais de treze anos, não me interessava muito por detalhes. Fiquemos, pois, apenas nisto: o bando encontrava-se pelas cercanias de uma próspera fazenda.

Lampião foi informado que a fazenda era do coronel João Nunes e, por incrível que pareça, ele estava em casa e... sozinho! O coronel era um militar brilhante e conhecidíssimo por sua atuação na repressão ao cangaço. Há muitos anos perseguia o nosso bando e conseguira infligir lhe sérias baixas. Lampião votava-lhe um ódio cego.

Quando Lampião soube da situação, sorriu de contentamento e seus instintos se aguçaram. Ficou animalescamente interessado, e preparou rapidamente uma investida sobre a casa, sem tiros nem barulho algum, a fim de surpreender o Coronel. E, de fato, tudo saiu certo, pois o pegamos sentado numa cadeira de balanço, lendo um livro.

O coronel ficou espantado, de início, mas logo recobrou a calma, embora fortemente seguro por dois “cabras” e com vários fuzis ameaçadores à sua frente. E foi com calma espantosa que disse, olhando Virgulino: “Lampião, você é e será sempre um covarde. Sempre agindo à traição... Por que não me avisou de sua chegada? Não tenha dúvida de que se eu sei de sua presença em minha casa, você só entraria passando sobre o meu cadáver!”

O coronel João Nunes falou com voz pausada, mas a entonação que dava às palavras, denotava sua forte personalidade e fazia-nos ver que só um bravo poderia falar assim. O bando inteiro gostou da atitude daquele homem baixinho. E eu, mais do que todos, pois é diante da morte que um homem revela a sua coragem. Lampião deve ter gostado também, mas seu ódio era forte demais para admirar o inimigo. Sorriu e respondeu, ironizando: “É, coroné, isso tudo está muito bonito, mas vosmecê vai morrer... Não aqui, pois vosmecê é um macaco graduado e pode dar complicações. Vamos andar bastante por essas estradas que vosmecê conhece muito bem, pois matou vários cabras meus, e quando chegar a sua hora, eu mesmo farei o serviço... Não tenha dúvida que vai morrer mesmo!”

VOCÊ VAI MATAR UM HOMEM!

O CORONEL ficou impassível enquanto Lampião falava, depois deu um sorriso e sua fisionomia continuo calma, para dizer: “E que tem isso, Lampião? Você vai matar um homem!”

Lampião ordenou que eu tomasse conta dele e que o amarrasse bem. Cumpri as ordens e o coronel não procurou me causar embaraços, ficando tranquilamente conformado com o que se passava. E era o que tinha de fazer. Franzino, fraco e já de idade, não podia tomar atitudes violentas, pois logo seria dominado. Mas não tinha medo, isso me impressionou seriamente.

O bando partiu pouco depois, e daí por diante foi só andar, andar, andar. Lampião queria sair do Estado de Alagoas para que não descobrissem o crime logo, pois, sendo sua vítima um militar da alta patente, a reação seria das mais violentas. Andamos dois dias, eu sempre tomando conta do coronel, que parecia gostar de mim, pois conversava sempre comigo e, por incrível que pareça, nunca falava a respeito de sua situação. Eu, pouco habituado a lidar com gente ilustrada, fiquei gostando dele, e, no segundo dia de marcha, disse-lhe: - “Coroné, eu não vou deixar que o matem”.

O coronel olhou-me espantado e parece ter gostado do meu gesto, pois respondeu: - “Não creio que você consiga evitar isso e, francamente, não me assusta tanto a minha situação, pois, seu eu morrer, morre um homem! Fique tranquilo, portanto, e não vá se meter em dificuldades por minha causa...”

O homem era homem, mesmo! Os demais “cabras”, que ouviam tudo, iam, como eu, se convencendo disso, e, apesar do ódio que todos votavam aos “macacos”, com o coronel a coisa ficou diferente. Afinal, não era um “macaco”, era um coronel. Até Corisco e José Baiano passaram a apreciar a calma do coronel João Nunes. Ninguém zombava dele, pelo contrário, até que o respeitavam muito. Se não o desamarravam é porque Lampião não queria, e talvez mesmo temendo que o coronel, com uma arma na mão, não fosse lá muito interessante...

PARLAMENTAÇÃO

DEPOIS de prometer que tudo fara para que o não matassem, fui procurar Virgínio, cunhado de Lampião, e expus-lhe o caso. Virgínio ouviu e disse que também ele não aprovava muito aquela morte, mas Lampião não voltaria atrás, pois estava furioso. Virgínio, mais cauteloso, porém, obtemperou que, afinal, Lampião tinha sua razão, pois se soltassem o coronel ele logo se poria a perseguir novamente o bando.

Na minha ingenuidade de garoto argumentei que, ainda que solto, “uma andorinha só não faz verão”. Depois, com coronel ou não, nós sempre seríamos perseguidos. Virgínio, porém, escusou-se de interferir no caso, e mandou que eu fosse me entender com o chefe diretamente, pois ele preferia ficar a distância. Foi o que fiz, mas antes convidei Corisco e José Baiano para falarem junto comigo, e eles aceitaram...

A “conversa” foi diante de todos, inclusive do coronel, que estava de pé. Assim que fiz o pedido a Lampião para não matar o coronel João Nunes, ele demonstrou estar furioso, respondendo com grosserias. Corisco e José Baiano, entretanto, reforçaram o pedido, logo sendo seguido pelos demais “cabras”. Virgulino, porém, resistiu e disse que mataria o coronel e não ia demorar muito. Estava zangado! Foi quando o coronel interrompeu a discussão e disse para mim: - “Deixe pra lá, menino. O homem quer me matar... Por que vocês vão brigar com o seu chefe por minha causa? Deixe pra lá, pois este homem só se sente feliz matando covardemente”. Lampião olhou-o fixamente e eu senti que por trás daquela resistência estava algo de anormal com ele. Se tal não estivesse acontecendo, já teria posto um ponto final na discussão e liquidado ali mesmo o coronel. Mas não era esse o caso, pois ouviu, afinal, os pedidos de José Baiano e Corisco. Depois de alguns minutos, fingiu-se zangado (é o que suponho) e disse: - “Pois bem, soltem lá o apaixonado de vocês. Quem poupa inimigo, nas mãos lhe morre. Soltem ele...”.


CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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