Material do
acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
LAMPIÃO MORREU
DORMINDO
Onde Está a
Verdade Acerca do Fim do Rei do Cangaço? – Fidelidade de Maria Bonita e Brio de
Luiz Pedro – Ferocidade da Força Que Dizimou o Bando – Impossível, Hoje, o
Reaparecimento do Cangaço
EIS um
capítulo que eu preferia não incluir nesta narrativa. Trata-se de assunto de
grande repercussão e que é contado de diferentes formas. A maior parte dessas
descrições foram dadas por soldados e, naturalmente, com cautela, pois os que
estão do lado bom não gostam de mostrar certos detalhes. A morte de Lampião foi
um alívio para o Nordeste, mas não creio que, com seu desaparecimento,
cessassem todas as violências por aquelas bandas. Os abusos dos poderosos sobre
os fracos, o desleixo do Governo, deixando o povo daquelas regiões no
analfabetismo e no desamparo, serão sempre incentivos para o crime. A morte
sempre estará rondando esses lugares, muito embora o cangaço seja difícil de
renascer nesta época de aviação e exército bem equipados. Mas o povo que vive
por lá ainda é o mesmo do meu tempo, só o armamento dos soldados evoluiu, pois
a miséria ainda está bem viva, e, de quando em vez, temos a oportunidade de ver
um pouquinho dela aqui na Capital Federal, representada pelos paus-de-arara,
essas infelizes vítimas do flagelo das secas.
HISTÓRIA
CONTADA
A MORTE de
Lampião, na época, era o desejo de todo o país, razão pela qual as formas
empregadas para concretizá-la não pediam justificativas. O fato é que Lampião
morreu e está bem morto. Vejamos, porém, como isso se deu. O que sei da chacina
de Angicos foi-me contado por Bananeira, um “cabra” que esteve preso comigo na
Penitenciária de Salvador, e que cumpriu pena curta, graças às acusações que
fez contra mim. Muitas das “acusações”, ele nem presenciou, afirmou por ouvir
dizer, inclusive a matança de soldados em Queimada, na qual, conforme já
esclareci, eu não tomei parte.
Bananeira à esquerda e Volta Seca à direita
Mas Bananeira saiu cedo da cadeia e reuniu-se a alguns “cabras” que estiveram em Angicos e que conseguiram escapar por terem fugido quando começou o tiroteio. Entre os que fugiram, estavam Corisco, Gavião, e mais alguns, inclusive Balão, Nevoeiro e Relâmpago, estes três ainda vivos. Eles contaram como o caso se passou ao Bananeira e este tornou público os fatos. É baseado nessas narrativas que vou tentar reconstituir como se deu o fim de Lampião.
Seguidamente tenho ouvido descrições de parte de soldados, e a maioria dos fatos são os movimentos de tropas dos comandados do atual coronel Bezerra. Este mesmo, recentemente, detalhou o que se passou naquele dia da morte de Lampião. Infelizmente, o que ele contou não enquadra com o que me contaram os “cabras” presentes à luta. Todavia, de qualquer forma, é um depoimento. O coronel Bezerra contou algo, e como quem conta um conto aumenta um ponto...
Vejamos agora como a história se passou, observada por quem era do bando.
TUDO ERA PAZ
Lampião estava
com seus “cabras” na fazenda de Angicos, acampado e bem protegido por uma teia
de coiteiros. Estava tranquilo e nem de leve imaginava que aquele era seu
último dia de vida. Mal podia supor que naquela data terminaria sua longa
carreira de crimes. Ele tinha armado a rede e estava deitado com o fuzil no
chão, bem ao alcance de sua mão. Os demais “cabras” também estavam
despreocupados, descansando, deitados ou sentados no chão.
Todavia, a alguns quilômetros dali, a volante do tenente Bezerra, um dos “macacos” mais perversos que já perseguiu cangaceiros, desconfiada, fazia tudo para localizar o bando. Não sei quais os artifícios empregados por Bezerra, mas o fato é que ele conseguiu pegar um coiteiro de nome Pedro Cândido. A forma usada para fazer o homem delatar Lampião, não sei, nem creio que interesse...
Pedro de Cândido
Os soldados de Bezerra deviam ter-se movimentado com grande classe militar, pois o fato é que pegaram todos de surpresa. Lampião dormia no momento em que as metralhadoras começaram a pipocar. Tomados assim de supetão, alguns “cabras” fugiram, mas Lampião nem acordou! É fato que foi encontrado no chão, mas já caiu da rede morto e ensanguentado, com o corpo crivado de balas. Os “cabras” que se levantavam apavorados, mal ficavam de pé, caíam mortos, pois o ataque da volante foi cerrado e organizado.
BRIO DE
CANGACEIRO
ASSIM mesmo,
houve retribuição de fogo e a refrega ainda durou alguns minutos, embora vários
“cabras” fugissem para salvar a pele. Maria Bonita, ao ver Lampião estendido no
chão, correu para junto dele e foi ferida na perna. Arrastou-se até Lampião e
ficou junto do seu corpo, em pranto. E a fiel companheira de Virgulino ainda
falou para Luiz Pedro:
Luiz Pedro fitou o corpo de Lampião, encheu-se de brios
e não bateu em retirada. Pôs-se a atirar contra os soldados. Durou pouco esse
seu gesto de solidariedade com o chefe, pois uma bala bem endereçada o atingiu
e ele tombou sobre o corpo de Lampião.
“Você não disse que morreria com teu compadre? Pois
olhe, ele está morto!”
O cangaceiro Luiz Pedro
Com o chão repleto de cadáveres e alguns “cabras” feridos, a volante avançou. Quem tinha de fugir já estava longe. Os soldados ocuparam o “campo de batalha”, e o “cabra” que ainda estivesse vivo recebia tiro ou facada de misericórdia, tal como faziam os cangaceiros... Maria Bonita assistiu, sentada e ferida na perna, à chegada dos soldados. Ao ver um deles lhe apontar o revólver, falou estoicamente: “Pode matar-me! Lampião morreu e eu não quero mais viver...” Um tiro espocou e ela tombou morta ao lado do homem que tanto amou e pelo qual abandonou um lar decente e tranquilo. Com a morte de Maria Bonita terminava um dos idílios mais sinceros de que já tive notícia: amor que durou enquanto ambos tiveram vida...
O que se passou a seguir, foi o degolamento de todos os cadáveres. Explicou o tenente Bezerra, depois, que ordenou aquilo porque era mais fácil transportar cabeças do que corpos. Num saco caberiam doze cabeças... Tinha razão o tenente. Era o espírito prático e objetivo do nordestino que mais uma vez se manifestava...
EXPOSIÇÃO
MACABRA
FOI grande o
show com as cabeças dos cangaceiros, que até hoje estão expostas no Museu da
Bahia. A chegada da volante a Salvador foi um verdadeiro carnaval, e as
cabeças, já em princípio de decomposição, foram colocadas como troféus, na
escadaria da chefatura de Polícia. Dava asco ver aquele espetáculo, mas o povo
estava curioso e queria ver as cabeças de Lampião e Maria Bonita. Ante a
fisionomia alterada da companheira de Virgulino, as mulheres comentavam:
“Como ela era feia!...”
Bezerra, o perverso Bezerra, estava feliz e contava a todos a sua façanha. Ele só tratava Lampião de “Cego”, e fartou-se de contar como surpreendeu o bando. Recentemente, porém, deu uma entrevista e contou tudo bem diferente daquela época. Em ambas as ocasiões, esqueceu-se de dizer que, após a degola, deu cabo do coiteiro Pedro de Cândido, conforme é do conhecimento de todos. Nesta sua última entrevista ele disse que eu não prestava e era um cangaceiro sanguinário. Concordo com ele... Mas que lucrei eu? Fiz tudo isso e aqui me encontro, depois de cumprir vinte anos de cadeia, na mais completa miséria, com mulher e quatro filhos, vivendo com salário-mínimo. Ele, Bezerra, não foi menos ruim do que eu, e hoje está rico, é Coronel e dono de várias fazendas...
O mundo como é... Uns fazem maldades, matam e nada lucram, outros também matam, fazem maldades e acabam ricos e considerados.
O ÓDIO DO
CORONEL
NESSA
entrevista, o coronel Bezerra referiu-se a mim com ódio e indignação. Nem
parecia que da minha prisão até hoje haviam passado quase trinta anos. Parecia
que tudo acontecera ontem. “Esse sujeito não presta!”, disse o coronel, sem
atender que eu só tinha quatorze anos naquela ocasião, nem à forma pela qual me
tornei cangaceiro.
Não levou em conta também a cadeia que paguei; minha dívida, já saldada com a sociedade, foi excessivamente cobrada, pois, sendo eu menor, não poderia ficar tanto tempo preso. Não quis, finalmente, o Coronel respeitar sequer a desgraça de quem não tem onde cair morto e precisa sustentar mulher e quatro filhos.
Nada disso, o Coronel quis saber quando me atacou. “Macaco” infeliz! Ignoras por acaso que, se tenho pecados horrendos, tu também os tens? Pensas que só eu irei para o inferno? Que ingenuidade!...
Depois que o bando de Lampião foi dizimado, o cangaço ainda durou mais uns anos, e Corisco continuou com seu próprio bando, como já disse. Mas, exterminado Corisco, a vontade de organizar cangaços foi arrefecendo, até que terminou por completo.
É verdade que tenho falado pouco de minhas façanhas, mas podem os leitores ficar certos de que não estão perdendo nada. O que havia de mais interessante no bando não eram os meus crimes, pois esses constituem uma nota triste, visto não passarem de façanhas de um garoto pervertido por gente que só conhecia uma lei – o ódio, e um único direito – o de matar!
Material do
acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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