Marcas do
cangaço – Cabeças cortadas e uma estética própria nos equipamentos – Na foto
vemos as cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio e Zeppelin, mortos em 25 de
outubro de 1936, na fazenda Cangalexo, Porto da Folha, Sergipe.
Luxo místico e
riqueza marcam a estética do cangaço
“Olê, mulher
rendeira/
Olê, mulher
rendá/
Tu me ensina a
fazer renda/
Que eu te
ensino a namorar”
Assim diz a
canção-símbolo do cangaço. Sobre moda, Lampião e seus homens tinham pouco a
aprender e muito a ensinar. Vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos
de ouro e, como bons sertanejos, sabiam confeccionar toda a sorte de objetos e
vestimentas sem que por isso se questionasse sua virilidade: o “rei do cangaço”
costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à máquina com perfeição,
orgulhando-se da sua habilidade. “O bando de Lampião, sobretudo nos anos 1930,
possuía preocupações estéticas mais frequentes e profundas que as do homem
urbano moderno”, afirma o historiador Frederico Pernambucano de Mello,
pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor do livro Estrela de couro:
a estética do cangaço, com 300 fotos históricas e 160 reproduções de objetos de
uso pessoal dos cangaceiros, muitos pertencentes ao próprio autor.
Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião – Figura maior do cangaço
Tamanho apuro
visual, pleno de detalhes nas coisas mais cotidianas (cães com coleiras
trabalhadas em prata!), servia como proteção ao mau-olhado, instrumento de
hierarquia interna, tinha funcionalidade militar e era um poderoso instrumento
de propaganda junto às populações pobres, que se admiravam diante de todo
aquele luxo, cor e brilho. Era também uma forma de arte que o cangaceiro
carregava no seu corpo.
“Havia orgulho
em tudo aquilo, um esforço para que se pudesse chegar ao anseio de beleza de
cada um dos cabras. Era notável ainda um desprezo sistemático pela ocultação da
figura, atitude oposta à de quem se considera criminoso”, explica. “Morando num
meio cinzento e pobre, o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza, satisfazendo
seu anseio de arte e conforto místico.
Era como se os
mais esquivos habitantes do cinzento se levantassem contra o despotismo da
ausência de cor na caatinga e proclamassem a folia de tons e de contrastes.”
Em vez de procurar camuflagem, os cangaceiros desenvolveram uma estética
brilhante e ostensiva com roupas adornadas de espelhos, moedas, metais, botões
e recortes multicores que, paradoxalmente, os tornavam alvo fácil até no
escuro. “Todos armados de mosquetões, usando trajes bizarramente adornados,
entram cantando suas canções de guerra, como se estivessem em plena e diabólica
folia carnavalesca”, escreveu o Diário de Notícias, de Salvador, em 1929.
“Ainda que o
fascínio pelo cangaço tenha existido sempre, fomentado pela literatura de
cordel, Lampião soube jogar com todos os registros do visual para ‘magnificar’
a sua vida e transmitir a imagem de um bandido rico e poderoso. Foi o primeiro
cangaceiro a cuidar de sua estética, usando modos de comunicação modernos que
não faziam parte da sua cultura original, como a imprensa e a fotografia”,
explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião:
senhor do sertão.
Após terem seu
visual cantado pelo cordel, a fotografia, ao chegar ao sertão na primeira
década do século passado, fez a delícia do cangaço. “Essa existência criminal
parece ter sido criada para caber numa fotografia, tamanho o cuidado do
cangaceiro com o visual, com a imponência e a riqueza do traje guerreiro”,
avalia Pernambucano. “As vestimentas dos bandidos foram sendo incrementadas até
se tornarem quase fantasias. Esse era um dos aspectos da extrema vaidade
daqueles bandoleiros”, observa o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor
de Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. O homem do cangaço
era um orgulhoso que se esmerava no traje, até o final, como se pode ver na
célebre foto das cabeças de Lampião e seus homens ao lado de seus chapéus: “Dentre
os treze, não há dois iguais, tão ricos em tema e valor material quanto o do
chefe, prova da imponência da estética, cuja afetação exagerada adjetivou o
cangaço em sua etapa final, quando se chegou a incrustar alianças de ouro na
boca das armas”, nota Pernambucano.
A indumentária
dos cangaceiros do grupo de Lampião o período anterior a 1930 não era
esteticamente tão rica. Como podemos ver nesta foto de junho de 1927, em
Limoeiro do Norte, Ceará, após o ataque deste bando a cidade de Mossoró.
“Havia uma
estética rica que conferia uma ‘blindagem mística’ ao cangaceiro, satisfeito
com a sua beleza e ainda seguro em meio a uma suposta inviolabilidade.” A ponto
de contaminar as roupas dos policiais, que copiaram suas vestimentas, e mudar o
foco da guerra. “O contágio inelutável dá a força dessa estética e evidencia a
existência de outra luta, travada em paralelo, no plano da representação
simbólica. A vingança estética do cangaço contra a eliminação militar se dá
quando o ícone principal de sua simbologia se transforma na marca do Nordeste:
a meia-lua com estrela do chapéu de Lampião.”
Bandidos
Estimulando
essa “gana de ostentação” estava a própria essência política do cangaço. “Os
cangaceiros não admitiam ser comparados ou confundidos com bandidos comuns, uma
ofensa imperdoável. Viam-se como atores sociais distintos, na mesma estatura
dos ‘coronéis’”, explica Pericás. O que lhes permitia usar e abusar dos
figurinos: orgulhosos de si mesmos, tinham ainda um gosto pelas patentes
militares, promovendo “cabras” a postos de hierarquia militar e considerando
membros de seus efetivos como “soldados”. “Observe que todo grupo militar preza
os símbolos, as insígnias, as representações de poder.
Lembra-se do
Brejnev com medalhas que não cabiam no peito no tempo da Rússia soviética?
Sujeito inteligentíssimo, Lampião fez da costura e do bordado um critério a
mais de promoção e status no seio do bando e ele mesmo costurava as
vestimentas de seu bando. Saber prepará-los e conferi-los a seus homens era uma
grande vantagem”, salienta Pernambucano. “Não se chama o boi batendo na
perneira”, dizia o “rei”, consciente da necessidade de uma política de afagos
interna para amenizar a disciplina de que não abria mão. “A estética era uma
ferramenta para infundir o orgulho do irredentismo cangaceiro nos recrutas de
modo quase instantâneo. Antes desse recurso estético, imagino que essa inoculação
devesse ser lenta.”
Patrões
“Os bandos de
cangaceiros eram estruturas hierarquizadas com claras distinções entre as
lideranças e a ‘arraia-miúda’, sem voz de comando em posição claramente
subordinada aos chefes. Muitos consideravam os líderes do cangaço como
‘patrões’. E esses comandantes se viam assim, quase como os coronéis, com os
quais mantinham boas relações, colocando-se em posição igualitária aos
potentados rurais”, afirma Pericás. Na contramão do senso comum, os comandantes
cangaceiros eram de famílias tradicionais e relativas posses. Lampião, por
exemplo, pertencia à classe dos proprietários de terra e ele próprio foi um
criador de gado. Por isso o cangaço não foi, diz o pesquisador, uma luta para
reconstruir ou modificar a ordem social sertaneja tradicional, como preconizado
por boa parte da literatura sobre o fenômeno.
“Eles não
lutavam para manter ou mudar nenhuma ordem política, mas para defender seus
próprios interesses mediante o uso da violência, indistinta e indiscriminada.
Os bandidos procuravam, sim, manter vínculos com os protetores poderosos, o que
podia resultar, inclusive, em agressões contra o seu próprio povo”, diz
Pericás. Nesse sentido, a famosa justificativa da adesão ao cangaço por motivos
de disputas sociais ou vinganças familiares deve ser vista com desconfiança.
“Os cangaceiros diziam-se vítimas, obrigados a entrar na luta por honra, mas
isso era, na maior parte dos casos, um ‘escudo ético’, um argumento para
convencer as populações pobres de que eram movidos por questões elevadas, se
diferenciando dos bandidos comuns, o que não era real.” Lampião nunca viu como
prioridade ajudar os necessitados. “Em geral, guardavam o dinheiro grande e
davam alguns tostões aos pobres e às igrejas. E sempre faziam questão de que
isso fosse divulgado para criar uma imagem positiva junto ao povo.”
Corisco
Na prática, o
comportamento dos cangaceiros era parecido com o dos coronéis, que agiam de
forma paternalista com aqueles que eram considerados “seus” pobres. “Eles não
eram bandidos sociais e se pode mesmo dizer que sua presença foi um obstáculo a
um protesto social mais significativo. Apesar disso, como um executor
independente da raiva silenciosa da pobreza rural, o cangaceiro tinha o apelo
popular de um agente superior. A sua violência era um gesto admirado de
afirmação psíquica na ausência de justiça e mudança positiva”, acredita a
historiadora Linda Lewin, da Universidade da Califórnia, autora de The
oligarchical limitations of social banditry in Brazil.
Um membro das
forças de repressão contra o cangaço em 1927. Apesar da roupa ser muito próxima
aos cangaceiros, a indumentária dos componentes da repressão era normalmente
mais simples em termos de adornos.
Câmara Cascudo
já notara que “o sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente”. “O
cangaço pode ser visto como uma continuidade do ambiente violento do sertão,
onde era comum que paisanos carregassem e usassem armas no cotidiano, pautando
sua vida em questões morais, de honra e prestígio”, diz Pericás. Os cangaceiros
construíram a imagem de indivíduos injustiçados que haviam ingressado na
criminalidade por bons motivos. Mas, se eram violentos, o mesmo pode ser dito
dos soldados que os perseguiam. “A população que sofria violências das volantes
se voltava para os bandoleiros como uma resposta ou por vê-los em contraposição
aos ‘agentes da lei’”, analisa Pericás.
“Com seus
trajes inconfundíveis e nada tendentes à ocultação, se sentiam investidos de um
mandato mais antigo, havido por mais legítimo que a própria lei, esta, a seus
olhos, uma intrusão litorânea sobre os domínios rurais”, completa Pernambucano.
Os cangaceiros supriram a falta de poder institucionalizado no sertão. “Eles
seriam os fiéis da balança em muitos casos, sendo um poder paralelo, mais
fluido e inconsistente, mas que tinha apelo para as massas rurais”, diz
Pericás.
Com o tempo,
porém, o cangaço se revelou um negócio, o “Cangaço S/A”, como o descreve
Pernambucano. “Era uma ‘profissão’, um ‘meio de vida’. Os bandidos estavam
equidistantes do ‘povo’ e dos mandões, ainda que com maior proximidade das
elites rurais”, concorda Pericás. Como eram “independentes”, tinham sua imagem
dissociada diretamente dos coronéis. “Não sendo empregados de ninguém, eram de
certo modo autônomos, tirando das camadas mais ricas e dos governos o monopólio
da violência. Mas é sempre bom lembrar que a maioria da população sertaneja, apesar
da miséria, da exploração, da falta de emprego e das secas, não ingressou no
cangaço.”
Segundo o
pesquisador, um dos motivos para a longevidade da “boa” recordação dos
cangaceiros seria sua contraposição à ordem instituída. “Os policiais
representavam o governo, mas usavam a farda para transgredir. Assim, parte
dessa sociedade se voltou para os cangaceiros e viu neles o oposto, ou seja,
aqueles que lutavam contra a ordem.” Suas atividades criminosas, então, eram
justificadas no quadro maior da luta entre os dois “partidos”: cangaço e
polícia.
Politicamente
“reabilitados” e bem vistos, permitiam-se o luxo da ostentação, que se iniciava
pelos chapéus, cujas abas levantadas podiam chegar aos 20 cm de raio anular,
uma hipérbole em relação ao modelo original dos vaqueiros, de abas viradas, mas
curtas. “Experimentei o chapéu de Lampião no Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas: o pescoço bambeou. Tanto peso ornamental não teria nada a ver com
funcionalidade militar, mas com valores bem mais sutis”, conta Pernambucano. O
objeto tem cerca de 70 peças de ouro, entre moedas, medalhas e outros adereços,
o que levou um repórter da época a defini-lo como “verdadeira exposição
numismática”. O chapéu era o ponto de concentração dos adendos simbólicos que
caracterizam o traje do cangaceiro.
Amuletos
Coisas comuns
eram transformadas em amuletos que, além de reforçar a hierarquia, viravam
símbolos de uma crença mística. “A blindagem mística se traduziu nos muitos
signos (estrela de Davi, flor de lis, signo de Salomão e outros) e na profusão
do seu uso em todos os ângulos das vestimentas, o que dividia a atenção com o
puro anseio estético, a se mesclar a este, conferindo utilitarismo à fusão,
pela força de dar vida à crença tradicional numa suposta inviolabilidade em
meio a riscos extremos.” Mas não se iluda o espectador ao pensar que os bandos
eram “escolas móveis de superstição”. “O grosso da cabroeira, muito jovem,
entre os 16 e os 23 anos, pautava-se pela lei da imitação, sem consciência
daquilo de que se servia. O chefe usava? Basta.” As mulheres seguiam as modas
de perto, mas de forma distinta.
“Com alguns
traços de Valquíria e quase nenhum da amazona, a matuta que se engajou no
cangaço jamais adotou o chapéu de couro, coisa de homem. A elas ficou reservado
uma cobertura de feltro, de aba média, e a colocação, sobre a cabeça, de toalha
ou lenço”, conta Pernambucano. O mesmo se dava com os punhais que podiam chegar
a 80 cm para os homens (o tamanho limite era o do punhal de Lampião, que não
poderia ser superado), mas não passavam dos 37 cm no caso das mulheres.
As armas
brancas, aliás, são paradigmas na vestimenta do cangaceiro. Com função militar
quase morta após o advento da espingarda de repetição, os punhais serviam no
ritual letal do sangramento nordestino ou como símbolo de status. “Era
usado orgulhosamente sobre o abdome, à vista de todos, aço da melhor qualidade
europeia com cabo decorado de prata. Desfrutável ao primeiro olhar. Ou à
primeira fotografia.” O punhal de Zé Baiano, presente de Lampião, foi avaliado
em mais de 1 conto de réis, preço de uma casa. Outros símbolos de prestígio
eram a bandoleira, correia para segurar a espingarda no ombro, e a cartucheira
trespassada, essa uma necessidade nascida de se prover um adicional de munição:
150 cartuchos de fuzil Mauser presos com enfeites de ouro. Era comum, porém,
que as volantes, cientes do prestígio de seu uso, mirassem em quem portasse uma
dessas. A seu lado, iam os cantis, decorados com esmero, um espaço
surpreendente de arte de projeção. Como as luvas a que, nota Frederico
Pernambucano, o cangaceiro, no fausto dos anos 1930, juntou um bordado
colorido.
O lugar
privilegiado das cores, porém, eram os bornais, cuja policromia levou um
jornalista a descrever os cangaceiros como “ornamentados e ataviados de cores
berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval”. Visíveis por todos
os ângulos, os bornais eram responsáveis por mais de dois terços desse “porre
de cores”, o resto ficando por conta do lenço de pescoço, a jabiraca, com que
também se coava o líquido extraído de plantas da caatinga. “Nela, nada de nós,
mas puxadas as duas pontas para frente, em paralelo, o cangaceiro ia
colecionando alianças de ouro, tomando-se como rico quando formava o cartucho.
Houve quem tivesse mais de 30 alianças no pescoço”, conta. Viajando por Sergipe,
em 1929, Lampião teve os “apetrechos” pesados numa balança de armazém: 29
quilos sem as armas. No total, o peso carregado no calor tórrido da caatinga
podia chegar a quase 40 quilos.
Místico
Com menos
aprumo, a vestimenta contagiou os policiais. “A sedução da indumentária dos
cangaceiros arrebatava pelo funcional, pelo estético e pelo místico. A volante
se mimetizou a tal ponto que dela não restou imagem própria”, diz Pernambucano.
Para desespero das autoridades, que se sentiam derrotadas também no simbólico.
“Cumpre que se adote a proibição de fardamentos exóticos, de berloques,
estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos, porque a
impressão se faz no cérebro rude e, à primeira oportunidade, o chapéu de couro
cobre a testa e o rifle pende a tiracolo”, alertava um relatório oficial.
Curiosamente,
nota o pesquisador, pintores como Portinari ou Vicente do Rego Monteiro não
souberam captar o luxo e o colorido dessa estética em suas reproduções do
cangaço, optando, ideologicamente, por uma visão monocromática opaca, para
ressaltar o aspecto social do fenômeno, à custa da fidelidade ao real. “Não é
exagero dizer que ainda está por surgir, na pintura ou no cinema, quem consiga
combinar o ethos e o ethnos dessas comunidades para
retratá-las”, avalia Pernambucano. “O cangaço foi o último movimento a viver
‘sem lei nem rei’ em nossos dias, após varar cinco séculos de história. E o
último a fazê-lo com tanto orgulho, com tanta cor, com tanta festa e com uma herança
visual tão significativa.” Como, aliás, já diziam os versos de Mulher
rendeira:
“O fuzil de
Lampião
Tem cinco
laços de fita
No lugar em
que ele habita
Não fartá moça
bonita”
http://tokdehistoria.com.br/2015/06/23/cangaco-a-cor-que-invadiu-o-sertao/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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