Por Rangel Alves
da Costa*
Em muitos
lugares os postes de luz elétrica ainda não chegaram. Em muitas distâncias
interioranas, a vida continua com a mesma feição de cem anos atrás. Não há
fogão a gás, geladeira, televisão, bico de luz, inovação tecnológica alguma.
Celular é bicho desconhecido, coisa digital é alma do outro mundo.
Por lá ainda
se avista o pote na trempe, o fogão de chão, o feixe de lenha pelos cantos da
cerca, a moringa de barro cozido, a caneca de alumínio, o prato de estanho, o
aió pendurado no armador de rede, o embornal e o caçuá, o facão e a enxada, a
espingarda de caça perto da cumeeira, o cantil de couro cru e a cumbuca vazia.
E também um
velho pilão no quintal, um gibão carcomido de mato e suor, estribo e arreio,
chicote sebento de tempo, esteira de se espalhar pelo chão, tamborete de três
pernas, banco de varanda que cupim não rói, um oratório passado de geração a
geração, um santo de madeira que ninguém sabe mais o nome. E ainda a lamparina,
o candeeiro, o alguidar, a bacia de lavar mão, o radinho de pilha.
Um sertão
assim ainda existe. Ainda existe um sertão onde na escuridão só se avista uma
luz fraca e amarelada após a porta. Um sinal de vida no meio do desolado mundo.
É a luz fraquejante do candeeiro, no seu bailado manso de sopro de vento,
permitindo divisar o casebre em meio ao breu sertanejo. Mesmo a porta
entreaberta, é o candeeiro ainda aceso que testemunha a presença de vida. Até
mesmo pelas frestas do barro se avista o vaga-lume de lata e pavio.
Dizem que nos
tempos da escuridão total, quando somente os vaga-lumes, a mula-sem-cabeça e
outras aparições chispando fogo pelas ventas, vagueavam iluminando aquele mundo
hostil, a lua, mesmo cheia e fulgurante, evitava descer por ali. E assim fazia
para que as noites sertanejas não perdessem seus mistérios e sua magia. E
então, aquele mundo de breu se fazia chamejante sem candeeiro aceso. Até que
alguém fincou moradia e dividiu com os seres da noite a faísca de luz. Então a
lua cortou o seu véu e por isso mesmo brilha tão majestosa e mais bela que em
qualquer outro lugar.
Dois
candeeiros acesos, quando muito. Um na sala outro na cozinha. Mas nem sempre
assim, pois em muitas moradias, naquelas que quando se entra pela porta da
frente já se vista a porta de trás, basta um aceso para tudo ficar iluminado. E
de sobre. Não há vão escurecido, praticamente não há quarto nem portas e
divisórias separando espaços, apenas as quatro paredes de barro e cipó e alguns
arranjos por dentro.
Mas também
moradias com varanda, sala, quarto e cozinha. Ainda assim nem sempre mais de
dois candeeiros são acesos após a noite abrir sua boca sombreada. Quando a
luminária matuta é colocada num lugar mais alto no meio da casa, então a luz se
espalha de modo suficiente por quase todas as dependências. Também uma questão
de gastar menos gás e pavio. Ademais, até mesmo na escuridão é possível
encontrar o que resta esquecido desde muito.
O senso de
percepção é sempre mais forte que qualquer luz. O sertanejo sempre sabe onde
deixou seu cachimbo, sua palha de milho, sua agulha, seu frasco de xarope de
tacho. Daí não precisar de luz acesa para colocar a mão no que desejar. Contam
até que a Velha Purcina colocava linha na agulha, costurava e pregava botão,
sem ter qualquer claridade por perto. E não errava uma linha nem pinicava um
dedo. Também debulhava feijão sem que um só grão caísse fora da bacia. Mas
vivia se batendo pelos cantos diante do candeeiro.
Floriano só
permitia candeeiro aceso até encerrar o café, quando tinha. Como gostava de
farinha seca com pedaço de preá assado na brasa, precisava enxergar a comida para
não perder o prumo no arremesso da farinha. Assim mesmo, pois apanhava um
punhado de farinha e arremessava na boca. Não errava uma. Em seguida mordia um
pedaço do assado e derramava café por cima. Daí a necessidade da luz de
candeeiro por perto.
Mas após o
café e o prato lavado, pedia à mulher que apertasse o pavio com os dedos da
mão. Era sinal para que tudo voltasse à escuridão. A mulher até gostava que
fosse assim. Estava acostumada com a noite, com o breu, com a aquela cor
misteriosa e encantadora. E também porque a casa ficava mais refrescada e
chamativa para a chegada do sono. Contudo, principalmente pela outra luz que
logo iam atrás. A luz da lua sertaneja.
Do lado de
fora da casa o encontro com a luz maior. A lua grande, cheia, transbordando
luz, descendo toda sua força naquele mundo com pouca riqueza a iluminar. A
meninada correndo pela malhada como se fosse dia, a mulher ecoando a velha
canção de reisado enquanto penteia os cabelos: “Oi de casa oi de fora, Maria vá
ver quem é. Somos cantador de Reis, quem mandou foi São José...”. E o homem
olhando para o alto, lendo na linha do horizonte o destino de todos: “Amanhã
vai chover. Amanhã vai chover...”.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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