Por Rangel Alves
da
Costa*
A morte é um
fato triste, angustiante demais. Os povos se despedem dos seus segundo suas
próprias crenças, tradições e costumes. Há sociedades que festejam ao invés de
prantear, não significando alegria, mas na crença de que assim o ente querido
não levará consigo o remorso da ausência terrena. Noutras sociedades os prantos
e os rituais se prolongam por semanas inteiras, até que o morto esteja
devidamente preparado para enfrentar o além.
No Brasil não
há muitas variações de despedidas. Comumente a tristeza pelo acontecido, o
último adeus no velório e os lamentos incontidos durante o cortejo fúnebre e a
descida ao último leito. Nem sempre acontece missa de corpo presente nem
acompanhamento de toda a família. Também pelo fato de que os velórios saíram
das residências para os velatórios que se espalham pelas cidades.
Há de se
considerar ainda que o sentimento pelo desaparecimento de um parente ou amigo
não mais possui o pesar de outros tempos. Ao menos exteriormente, as feições
dos que ficam não se mostram tão carregadas de consternações. Constata-se isso
nos velórios que mais parecem silenciosas reuniões do que mesmo um momento de
expressão maior de tristeza. Logicamente que nem sempre ocorre assim, pois
situações existem onde familiares só faltam mesmo querer tomar o lugar do defunto.
Foi-se o tempo
das vertigens, das agonias, dos gritos incontidos, dos descabelamentos, dos
adormecimentos por força de remédios, do quase enlouquecimento, do choro
incontido, das faces feridas pelo sofrimento, da descrença momentânea na
divindade, dos lenços e roupas encharcados, do mundo parecendo querer acabar.
Há pranto, há dor, há sofrimento, mas não mais expressado como noutros tempos.
Talvez a concepção da morte como destino e não como um fim, tenha possibilitado
uma nova forma de enfrentamento dessa dura realidade.
O sertão
nordestino caminha para essa nova realidade do enfrentamento da morte, ao menos
nos centros urbanos das cidades mais desenvolvidas. Nestas, poucos são os
velórios feitos ainda nas residências familiares, pois mesmo uma cidade pequena
não deixa de ter um ou dois velatórios. Na ausência de missa de corpo presente
- pois tal ofício se volta apenas para defuntos mais importantes histórica ou
socialmente -, geralmente o caixão é levado até a igreja e daí segue em cortejo
até o cemitério. Nas cidades menores permanece o ecoar pesaroso dos sinos,
dobrando melancolicamente para anunciar os falecimentos.
Tornou-se
raridade, mas nas lonjuras nordestinas ainda se proporciona uma despedida
decente e ao modo dos antepassados. Nas distâncias sertanejas ainda se
reverencia o morto com todas as honrarias matutas. Os amigos logo chegam,
choram a despedida, tecem recordações de amizade e permanecem pela noite
inteira e madrugada adentro na residência do pranteado, só que do lado de fora,
ao redor de fogueiras, bebendo o morto. Lá dentro, ao redor do caixão,
iluminados pelas velas que crepitam entristecidas, familiares e amigas,
principalmente as mais idosas, entoam cantos fúnebres até o momento da partida.
A sentinela de
adeus se transforma então no ecoar aflitivo e triste de ladainhas e rezas de
encomendação da alma. Os cantos são tão compassados e melancólicos que tudo ao
redor parece se transformar num manto de dor. As velas chamejam, os lenços são
levados aos olhos, os olhos descem sobre o caixão, a boca se abre para a
ladainha, e assim a estrada do falecido vai sendo aberta rumo ao lugar
merecido. Até que o sol surge para mostrar olhos já quase sem lágrimas para
molhar a terra enquanto a pá vai jogando areia sobre o caixão.
Daí todo o
encanto, embora por dolorosos motivos, dos autênticos velórios sertanejos. Mas
nada mais comovente que as sentinelas que adentram a noite e varam a madrugada
com aquelas vozes ecoando lamentos. Mesmo ao longe, as preces, rezas e orações
são ouvidas numa plangência de cortar coração. Velhas senhoras com seus terços
e rosários, seus véus negros e feições entristecidas, encomendando a alma do
morto através das incelenças. Estas são cânticos recolhidos do tempo para
ajudar na passagem do morto.
Então as
incelenças ecoam em triste plangência: “Uma incelença de Nossa Senhora/ Pega
essa alma, entrega na glória/ É de levar, é de levar/ Esse presente pra Nossa
Senhora/ Duas incelença de Nossa Senhora/ Pega essa alma, entrega na
glória...”. E também no caminho do velório, já arribando em direção ao
cemitério: “Lá se vai a alma/ Vai junto nosso pranto/ Nada mais acalma/ Oh
triste desencanto/ Alma tão bondosa/ Que triste desencanto/ Oh Mãe Graciosa/
Cubra com seu manto...”.
E muitas vezes
o luto, muitas vezes a dor demorada, difícil de acabar. É também um sentimento
diferenciado, verdadeiro, de um amor profundo que se prolonga além da morte. Os
dias de finados sintetizam bem esse querer preservado no tempo, mesmo que muito
tempo já havia se passado da despedida. Nos cemitérios, perante as covas, as
flores e as velas adornam a saudade, enquanto os olhos se derramam em lágrimas.
E o coração ainda chama, ainda deseja a presença.
Poeta e
cronista
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