O “Jornal de Alagoas”, de Maceió, em 18 de setembro de 1938, publicou a
seguinte crônica do notável escritor Graciliano Ramos, escrita depois de uma
visita a Antonio Silvino na Casa de Detenção/ Recife-PE, em companhia do também
escritor, José Lins do Rego:
“O automóvel deixou a cidade, atravessou arrabaldes de pequena importância,
rodou aos solavancos numa estrada que marginam casas decrépitas, miúdas e
descascadas. Moleques de cabelos de fogo, tranqüilidade, silêncio, tudo morno e
brasileiro.
A agitação e o
cosmopolitismo ficaram atrás sumiram-se na poeirada; agora parece que as coisas
em redor se imobilizaram. O carro que nos transporta avança rápido,
inutilmente. Há meia hora, tínhamos pressa contagiosa, mas isto desapareceu.
Seria melhor subirmos a cavalo essa ladeira empinada e cheia de buracos, onde
as rodas se enterram. Com dificuldade, lá nos vamos sacolejando, dobramos um
cotovelo, entramos numa rua esquisita, a máquina cansada geme e pára.
Desço,
bocejando. Para bem dizer, não sinto curiosidade. Cheguei até ali porque tive
preguiça de resistir e porque me era agradável a companhia de dois amigos.
Conversando com eles teria ido a um museu ou a qualquer outro lugar. O homem
que desejam ver gastou anos correndo os sertões do Nordeste, numa horrível
existência fecunda em histórias que povoaram a infância, com certeza enfeitadas
pela imaginação dos cantadores. Depois uma emboscada e o cárcere provavelmente
o desmantelaram. Talvez as marchas, as lutas, a fome, a sede, a fuga constante
e as fadigas das travessias não o tenham abalado; mas a bóia da cadeia, as
grades, a esteira suja na pedra, os mesmos gestos repetidos, as mesmas palavras
largadas em horas certas, infinitas misérias e porcarias, inutilizaram o velho
herói de encruzilhadas.
É quase certo
irmos encontrar um indivíduo sombrio e cabisbaixo, embrutecido pela desgraça,
indiferente às façanhas antigas, hoje atenuadas, esparsas. Está ali perto um
fantasma triste e desmemoriado, mostrando vagos sinais de vida em movimentos de
autômato. Penso assim, olhando o pátio duma habitação coletiva. Alguém foi
anunciar a nossa visita. E, enquanto espero, vejo com desgosto à entrada uma
enorme criatura que se achata, se derrama, gorda, paralítica, medonha. Essa
figura monstruosa perturba-me, fixa-me a idéia de que ali vive outro ser
doente, com deformações invisíveis, piores que as que agora me surgem. Desejo
não ser recebido, receio tornar a ver um daqueles rostos pavorosos que há tempo
me cercavam.
Recebem-nos.
Dois minutos de espera. E estamos na presença de ANTONIO SILVINO, um velho que
me desnorteia, afugenta a imagem que eu havia criado, tipo convencional,
símbolo idiota, caboclo ou mulato que, medido por um dos médicos encarregados
de provar que os infelizes são degenerados, servisse bem: testa diminuta,
dentes acavalados, cabelo pixaim, olhos parados e sem brilho, enfim um desses
pobres-diabos que morrem no eito e não fazem grande falta, agüentam facão de
soldado nas feiras das vilas e não se queixam.
Enganei-me,
estupidamente. ANTONIO SILVINO é um homem branco. Seria mais razoável que fosse
um representante das raças inferiores, que, no Nordeste e em outros lugares,
constituem a maioria da classe inferior. Mas é um branco, e se for examinado
convenientemente, não dá para bandido. Não dá e não quer ser bandido. Por isso
malquistou-se com alguns repórteres desastrados que o ofenderam.
Conosco é
amável em demasia. A hospitalidade sertaneja revela-se em apertos de mãos, em
abraços, num largo sorriso que lhe mostra dentes claros e sãos. Esse pé de
mandacaru, transplantado para um subúrbio remoto do Rio, deita raízes na pedra
do morro e esconde cuidadosamente seus espinhos. Antes de refletir, aperto a
garra poderosa.
Antigamente,
essa aproximação teria sido impossível: fui como outros, um sujeito muito besta
e convencido de não sei que superioridade. Felizmente esqueci isso. Dou razão a
Antonio Silvino, que não quer ser bandido, não porque os bandidos sejam muito
piores que os outros homens, mas porque a palavra “odioso” se tornou um
estigma.
Um dos meus companheiros é o escritor José Lins do Rego, que em menino conheceu o sertanejo temível no engenho do coronel José Paulino, hoje famoso por ter figurado em vários romances notáveis. José Lins em poucas palavras reata o conhecimento antigo, e Antonio Silvino logo se torna íntimo dele, conta histórias de cangaço, brigas, visitas que faz a outros personagens de romances.
Um dos meus companheiros é o escritor José Lins do Rego, que em menino conheceu o sertanejo temível no engenho do coronel José Paulino, hoje famoso por ter figurado em vários romances notáveis. José Lins em poucas palavras reata o conhecimento antigo, e Antonio Silvino logo se torna íntimo dele, conta histórias de cangaço, brigas, visitas que faz a outros personagens de romances.
Ultimamente,
ao sair da prisão, parece que andou nas terras do velho Trombone e, com sisudez
e prudência, espalhou conselhos úteis que resolveram certas dificuldades de
família.
Conversando,
narrando as suas aventuras numa linguagem pitoresca, ri alto, mexe-se, os olhos
miúdos atiçam-se, uma bela cor de saúde tinge-lhe o rosto enérgico, vincado
pelo sofrimento. Apesar das rugas, tem uma vivacidade de rapaz: um tiro no
pulmão e vinte anos de cadeia não demoliram essa organização vigorosa. Os
cabelos estão inteiramente brancos, mas a espinha não se curva, a voz não
hesita. É o mais robusto dos que se acham na sala acanhada, em torno duma
pequena mesa. Lembro-me dos seus antigos subordinados, viventes mesquinhos que
ele submetia a uma disciplina rude.
Nas visitas ao
velho José Paulino, ficavam no alpendre, encolhidos, silenciosos como colegiais
tímidos, enquanto lá dentro o chefe conferenciava com o proprietário.
Certamente esses pobres seres, anônimos, sem menção nas cantigas dos violeiros,
desfizeram-se na poesia social, mas o seu comandante está rijo, palestrando com
um neto do coronel, não muito diferente do que há trinta anos. Penso na
distância enorme que os separava do patrão.
ANTONIO
SILVINO dirigiu-se com altivez, não ombreou com eles. Teve amigos poderosos,
combateu longamente inimigos poderosos também. Os oficiais das tropas volantes
eram seus adversários, o que teve sorte de feri-lo e vencê-lo foi, segundo ele
afirma, um adversário leal. Na caatinga imensa, perseguido, queimado pela seca,
Antonio Silvino teve sempre os modos dum grande senhor, muitas vezes mostrou-se
generoso e caprichou em aparecer como uma espécie de cavaleiro andante,
protetor dos pobres e das moças desencaminhadas.
Na prisão
desviou-se com soberba dos criminosos vulgares e, não obstante ter vivido em
Fernando de Noronha, nunca se misturou com eles. A convicção que manteve do
próprio valor manifesta-se em todos os seus atos.
Não parece que o regime penitenciário seja bom para endireitar os condenados. Os guardas da correção sabem perfeitamente como é difícil um indivíduo conservar-se ali sem se degenerar. De alguma forma a degradação justifica a pena: o que volta do cárcere é um farrapo.
Não parece que o regime penitenciário seja bom para endireitar os condenados. Os guardas da correção sabem perfeitamente como é difícil um indivíduo conservar-se ali sem se degenerar. De alguma forma a degradação justifica a pena: o que volta do cárcere é um farrapo.
Antonio
Silvino isolou-se, achou meio de não se contaminar. Foi um preso muito
bem-comportado, tanto que lhe permitiram esta coisa estranha: alojar os filhos
no cubículo onde vivia. Criou-os, dividiu com eles a ração magra, conseguiu,
fabricando botões de punhos, obter os recursos necessários para educá-los. E
educou-os de maneira espantosa. Na situação em que se achava seria natural que
lhes incutisse ideias de vingança. Nada disso. Ensinou-lhes o respeito à lei, à
lei que os afastava do mundo, cultivou neles sentimentos religiosos e
patriotismo. Orgulha-se de os ter formado assim, de os ver hoje servidores
fiéis do exército e da marinha.
O trabalho desse sertanejo deve ter sido enorme, mas a verdade é que ele não se transformou para realizá-lo. Homem de ordem indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades.
Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”.
O trabalho desse sertanejo deve ter sido enorme, mas a verdade é que ele não se transformou para realizá-lo. Homem de ordem indispôs-se com outros homens de ordem, fez tropelias no sertão, caiu numa cilada e penou vinte anos para lá das grades.
Continuou, porém, a ser o que era, apesar da cadeia: homem de ordem, membro da classe média, com todas as virtudes da classe média”.
Fonte:
facebook
Página: Voltaseca Volta
https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/?fref=ts
Grupo: Lampião,
Cangaço e Nordeste
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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