Por Raul Meneleu Mascarenhas
Comecei a ler
e marcou-me a narrativa do autor, que conta-nos um acontecido que se deu nas
entranhas da caatinga dos cardeiros espinhentos, do sertão das almas que pedem
chuva e quando essa não vem, choram. Choro esse para molhar o chão ressequido
que recebe aquela secreção de cor do sofrimento suspirado e salgado e salgado
fica cada vem mais, o chão.
Certo dia, conta-nos José
Lins do Rego, apareceu na cidadezinha que estava perdida na caatinga do sertão
pernambucano um homem com uma viola nas costas, um saco nas mãos e atravessado
em seu peito uma rede de dormir servindo de colete. Era um cantador desses que
o sertão já vira por diversas vezes perambulando pelas feiras populares.
O cantador
chamava-se Deocleciano e em cada cidadezinha que passava, as pessoas conheciam
sua força expressiva pois contava estórias que faziam aquela gente chorar, rir
e admirar sua desenvoltura e que deixavam marcadas nas mentes como um ferro de
marcar gado aqueles que o escutavam. "Fora amigo de cangaceiros. Não dizia
nada para não ser tomado como espia. Deus o livrasse de cair na mão de uma
volante, de tenente de polícia. Conhecia cangaceiro de verdade. Nem era bom
falar."
Antônio Bento,
que ajudava na igreja, como coroinha, se tornara seu amigo por admirar a vida
de liberdade daquele menestrel vagabundo e ouvia atento suas
narrativas. Só dizia tais para Bentinho (como todos o chamavam) para
que ele pudesse avaliar sua força mostrada aos cangaceiros, cabras que gostavam
de ouvir viola nas noites de lua, nos ermos da caatinga. Cantava para eles
com paixão.
"Lá para
as bandas de Princesa estava aparecendo agora um Ferreira, que era um bicho
danado. Diziam que ele estava vingando a morte do pai. E que não respeitava nem
os coronéis do cangaço! - Menino, não queira ver cangaceiro com raiva. Dê por
visto um demônio armado de rifle e punhal. Eu estava uma vez numa fazenda perto
de Sousa. Chegara lá depois de dez léguas tiradas a pé. O homem me deu pousada.
Dormi no copiar da casa, na minha rede.
No outro dia,
mais ou menos por volta das duas da tarde, nós estávamos na mesa, na janta,
quando vimos os cangaceiros na porta. A família correu para as camarinhas e eu
e o velho ficamos mais mortos do que vivos, estatelados. Era Luís Padre com o
bando dele. "Velho safado!", foi ele gritando logo, "se prepare
para morrer." O homem se levantou e foi duro como o diabo: "Estou
pronto bandido, faça o que quiser".
Luís Padre
perguntou pelas moças. Queria comer. O pessoal estava fome. E foi andando para
o interior da casa. O velho pulou em cima dele como uma cobra. Nisto os cabras
se pegaram ele. "Amarre esta égua", gritou Luís Padre. As moças e a
velha correram para a sala de janta, fazendo um berreiro como se fosse para
defunto. "Meninas", disse o chefe do bando, "nós queremos é de
comer. Deixa a velha na cozinha. Nós queremos é conversar com
vocês."
Nisso a velha
caiu nos pés de Luis Padre: "Capitão, respeite as meninas! Não ofenda as
minhas filhas, capitão!" - "Ninguém vai ofender as meninas, velha
cagona!" E foi uma desgraça que eu nem tenho coragem de contar. Os cabras
estragaram as moças. Ouvi o choro das pobres, os cabras gemendo no gozo, o
velho urrando como um boi ferrado. Foi o dia mais desgraçado de minha vida.
No começo eles
quiseram me dar. Contei que não era dali. O homem me dera uma pousada. Eu era
um cantador. Então botaram as moças quase nuas no meio da casa. Tinham que
dançar. Nunca na minha vida vi cara de gente como a cara das moças. Estavam de
pernas abertas até grudadas nos cabras. Toquei viola e cantei até de madrugada.
Fiquei rouco, com fala de tísico. Depois eles deram uns tiros no velho e
meteram o pau na na mulher. Tive que sair com o grupo até longe. Me disseram
horrores. Se a polícia chegasse no Espojeiro, tinha sido coisa minha. Quando me
vi solto na caatinga, estava como um defunto, nem podia dar dois passos. Era de
noite. O céu do sertão era um lençol de algodão com a lua. Não tive mais
coragem de andar. Estendi minha rede debaixo de um pé de umbú e dormi. Dormi
tanto que acordei com sol na cara. A minha goela queimava como se eu,
tivesse comido um punhado de pimenta. O meu corpo estava podre. E nem quis mais
pensar na noite da desgraça. Menino, dois meses depois, ainda tinha na cabeça o
velho esticado no chão, as meninas dançando, a velha chorando. Tive até
medo de ficar doido. Foi ai que pus a história no verso. E na feira de Campina
Grande, quando cantei a coisa pela primeira vez, vi gente chorando e mulher se
benzendo. O dono do hotel mandou botar no jornal da Paraíba a cantiga que eu
tinha feito. Um sujeito do Ceará mandou um recado. Queria que eu dissesse as
coisas para ele passar no papel. O velho Batista da Paraíba fez umas loazinhas
parecidas, igualzinhas aos versos que ele tirava para Antônio Silvino, e botou
para vender nas feiras."
Essa
narrativa, de José Lins do Rego, grande escritor da moderna literatura
brasileira, é ficção das boas. Mas quem duvida que essas coisas aconteceram de
verdade? Devem ter ocorrido diversas vezes, pois raça mais miserável e perversa
que a de cangaceiros não existiu no sertão nordestino.
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/08/cangaceiros-perversidades-e-violencias.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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