por José Gonçalves do Nascimento
No dia 2 de dezembro de 1902, vinha a lume, na então capital federal, pela
Laemmert & C. Editores, um dos maiores monumentos das letras nacionais: Os
sertões (Campanha de Canudos), do jornalista, militar e engenheiro Euclides
Rodrigues da Cunha, nascido em 20 de janeiro de 1866, em Cantagalo, antiga
província do Rio, e morto em 15 de agostode 1909, em confronto com o jovem
cadete Dilermando de Assis.
Naquele mesmo ano, 1902, mais quatro obras de vulto despontavam no cenário da
literatura nacional e estrangeira, a saber: Canaã, de Graça Aranha, (Brasil), A
ceia dos cardeais, de Júlio Dantas, (Portugal), Coração das trevas, de Joseph
Conrad, e O cão dos Baskerville, de sir Arthur Conan Doyle (Inglaterra).
Canaã retrata a saga dos imigrantes germânicos numa colônia da então província
do Espírito Santo. Caracterizado pelo confronto entre diferentes visões de
mundo, onde avulta a violência do preconceito racial, o romance tem como personagens
principais os jovens Milkau e Lentz, que vivem o desafio de construir uma vida
nova em terra estrangeira – a terra de Canaã. Trata-se de obra importantíssima
para a compreensão da realidade brasileira, naquele princípio de século
XX.
A ceia dos cardeais é um clássico da dramaturgia mundial. A peça tem como
cenário uma luxuosa sala no Vaticano, onde, durante a ceia da noite, depois de
algumas rusgas, três cardeais já velhinhos lamentam o peso do tempo, enquanto
relembram os amores do passado. Traduzida para um sem-número de idiomas, a obra
ainda atrai a atenção do público.
Coração das trevas é uma crítica contundente à exploração predatória do Congo
negro, por parte de Leopoldo II, rei da Bélgica. A obra relata a viagem do
capitão Marlow em direção ao interior da África, com o objetivo de resgatar o
lendário Kurtz, negociante de marfim, que criou em torno de si um culto baseado
em sacrifícios humanos. A viagem do narrador ao “coração das trevas”, onde se
deparou com multidões de homens negros trabalhando como escravos, converte-se
em rito de iniciação ao mal absoluto, equivalente à descida ao “sombrio círculo
de algum inferno”. Tida como uma das obras-primas da literatura inglesa e parte
do cânone ocidental, o livro inspiraria anos mais tarde o filme “Apocalypse
now”, de Francis Ford Coppola.
O cão dos Baskerville é, talvez, a melhor história policial que já se escreveu
até os dias de hoje. Na trama, sir Charles Baskerville é encontrado morto em
circunstâncias misteriosas, havendo em torno do seu corpo pegadas ainda frescas
de um cão monstruoso. Apôs o ocorrido, sir Henry, o único herdeiro da prole,
passa a sofrer estranhas e inexplicáveis ameaças. Reza uma lenda que todos os
varões da família Baskerville haverão de morrer sob as garras letais de um cão
infernal. Para solucionar o enigma, é convocado ninguém menos que o famoso e
experimentado detetive Sherlock Holmes. Permeado de vaivéns, mistérios e
suspenses, o livro é um dos mais populares no gênero, com inúmeras adaptações
para as telas do cinema.
Todavia, em que pese o fascínio que tais obras até hoje exerceram sobre os mais
variados públicos, nenhuma delas conseguiu jamais aproximar-se do valor, da
grandeza e da magnitude d’Os sertões, denominado por seu autor como livro
vingador.
Os últimos meses que antecederam o lançamento d’Os sertões, todavia, foram de
profunda frustração para o escritor fluminense. Em 19 de outubro de 1902,
escrevia Euclides da Cunha ao amigo Escobar:
"Chamaste-me atenção para vários descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com
mais cuidado e fiquei apavorado. Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada
página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda,
um (;) impertinente... Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o
valor daquele pobre e estremecido livro?"
O jornalista Viriato Correia, que entrevistou Euclides em agosto de 1909,
narrou, na revista Ilustração Brasileira, o que dele ouviu sobre a torturante
crise que lhe abatera os ânimos nos primeiros instantes d’Os sertões:
"Ao chegar à Companhia Tipográfica, abrindo ao acaso um volume, lá
encontrava um com uma crase intrusa, adiante uma vírgula de mais, etc., etc.
Aquela crase, aquela vírgula, aqueles outros erros pareceram-lhe grandes blocos
de pedra que vinham atacar o seu nome. Que horror! E a ponta de canivete
(parece mentira, mas verdade), em dois mil volumes Euclides raspou oitenta
erros. Foram cento e sessenta mil emendas! Um estranho pavor se apoderou de
Euclides. Tinha certeza de que a obra ia ser um desastre." E tocou-se para
Lorena.
Ali chegou oito dias depois, encontrando, ainda segundo Correia, duas cartas do
editor.
"Abriu uma por acaso [continua Correia], por felicidade era a segunda.
Nesta carta o editor dizia que estava assombrado com a venda do livro e que em
oito dias estava quase esgotado um milheiro; A outra carta, a primeira, era
esmagadora. O editor confessava-se-lhe redondamente arrependido de tê-lo
editado. Dizia que não havia vendido um único volume – Se eu tivesse lido essa
carta em primeiro lugar, parece que morreria, conclui Euclides,
sorrindo".
Surpreendentemente, o livro que tanto desconforto trouxera ao seu autor acabou
por tornar-se o maior espetáculo literário do início do século XX e o primeiro
best-seller da literatura brasileira, obtendo estrondoso sucesso de crítica e
de venda.
Em artigo publicado no jornal Correio da manhã, um dia após o advento d’Os
sertões, o consagrado escritor José Veríssimo, o maior e mais mordaz crítico
literário da época, não economizou encômios à obra em apreço, no que foi
seguido por outros insignes resenhistas, a exemplo de Araripe Júnior, Moreira
Guimarães, Coelho Neto e Sílvio Romero. Este último, que, aliás, não era dado a
largos elogios, elevou o livro de Euclides ao patamar das coisas sagradas,
admitindo-se-lhe a possibilidade de culto e veneração:
"Deixai que exerça livremente meu direito de admirar. Também sei queimar
gostosamente bagas de incenso, quando o altar não está vazio e nele existe
realmente o que se deva venerar. Para tanto, no caso, não hei mister
improvisar; basta-me abrir o vosso livro e ler nele como se lê nos missais nas
cerimônias do culto".
Dois meses após o aparecimento da enigmática obra, e contrariando as
expectativas do primeiro momento, comunicava Euclides ao pai: “recebi uma carta
do Laemmert declarando-me que é obrigado a apressar a 2ª edição dos Sertões
para atender a pedidos que lhe chegam – e aos quais não pode satisfazer por
estar esgotada a 1ª. Isto em dois meses.”
Era a consagração do livro e do autor.
Dividido em três partes, a saber: a Terra, o Homem e a Luta, o livro ora em
apreço empreende ampla e profunda abordagem acerca da geografia do Nordeste e
dos tipos humanos que povoam essa parte do Brasil, culminando com o conflito
entre o exército brasileiro e os heroicos habitantes de Canudos – comunidade
liderada pelo beato cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, comumente conhecido
como Antônio Conselheiro.
Tem o texto o mérito de mediar o difícil e doloroso diálogo entre o “Brasil real e o Brasil oficial” – para usar uma expressão de Machado de Assis – despertando a atenção das elites políticas, econômicas e culturais para os inumeráveis problemas que faziam (e fazem) desta uma nação dividida entre o progresso do litoral e o atraso do interior. Pela primeira vez, no Brasil, uma obra de literatura assumia a discussão sobre os reais problemas do país e lançava as bases para a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Escrito nos raros momentos de intervalo, enquanto seu criador monitorava a reconstrução de ponte metálica na cidade paulista de São José do Rio Pardo, Os sertões, por força do seu estilo único e sui generis, em que convivem no mesmo espaço história, ficção, poesia e literatura é considerado por muitos estudiosos como livro inclassificável, não sendo possível circunscrevê-lo em nenhum dos gêneros literários até aqui conhecidos. Com acerto, pontifica Afrânio Coutinho: “Não há modelo que se lhe possa comparar com exatidão, fato, aliás, que se passa com a maioria das obras-primas da humanidade, cada uma realizando-se segundo lei que é a sua própria e criando seu próprio padrão estrutural.” Noutro passo da sua extensa e brilhante obra, sentencia o douto pensador baiano: “Os sertões são uma obra de ficção, uma narrativa heroica, uma epopeia em prosa, da família de Guerra e Paz, da Canção de Rolando, cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada.”
Para o já mencionado escritor José Veríssimo,
"O livro do Sr. Euclides da Cunha é ao mesmo tempo o livro de um homem de
ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um
filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta,
um romancista que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da
natureza, como ao contato do homem".
Tamanha importância detém Os sertões que por cerca de meio século foi ele a principal referência no tocante à história de Canudos, mesmo existindo sobre o assunto outras fontes igualmente valiosas, muitas das quais publicadas antes mesmo do surgimento do livro vingador.
Essa quase hegemonia d’Os sertões, se por um lado obliterou as demais literaturas sobre a matéria, por outro conferiu maior status ao episódio tido no sertão da Bahia, levando-o, inclusive, a transpor as fronteiras nacionais e tornar-se conhecido em outras partes do orbe. Para a estudiosa Marilene Weinhardt
"sem Euclides da Cunha, os acontecimentos de Canudos não teriam a mesma atenção que têm merecido. Seja porque representou o mea-culpa das elites, seja pelas qualidades estilísticas da narrativa. O fato é que o episódio de Canudos encontrou sua expressão ideal na pena de Euclides".
Na edição de 23 de novembro de 1994, a revista Veja convidou um grupo de 15 renomados intelectuais, com o objetivo de escolher a obra brasileira que pudesse ser classificada como o cânone nacional. Merecidamente, Os sertões apareceu em primeiro lugar. Não é descabida, portando, a opinião dos que defendem ter o escritor fluminense exercido papel fundador na cultura brasileira, a exemplo de Cervantes, na Espanha, Goethe, na Alemanha, Alighieri, na Itália e Camões, em Portugal. Vertido para 13 idiomas e contando, em terras brasileiras, com mais de 80 edições, o livro de Euclides é um dos mais lidos e difundidos no Brasil e no exterior.
Afirma Celso Furtado que se 110 anos depois "a obra de Euclides permanece tão atual é por seu caráter pioneiro no reconhecimento da formação de um mundo em construção (...). Os problemas que hoje nos angustiam – a fome, o analfabetismo, o latifundismo – são substrato da realidade por ele descrita. O que nos leva a reconhecer que ele captou, avant la lettre, a resistência às mudanças em nosso país".
Da mesma forma como Euclides da Cunha contribuiu para o engrandecimento das letras brasileiras, Os sertões, sua obra maior, encarregou-se de perpetuar no tempo a magnífica saga de Canudos ou Belo Monte, legando às gerações futuras o maior exemplo de heroísmo popular que a história do Brasil até aqui registrou.
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
(do livro: Canudos: "uma vila florescente e rica")
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário