*Rangel Alves
da Costa
Quanto mais eu
rezo mais assombrações me aparecem, eis as palavras mais constantes na boca de
Zé Medroso. E este um cabra sertanejo que tudo tinha para enfrentar qualquer
realidade sem nada temer. Mas como sempre repetiam, jamais se viu pessoa mais
covarde na face da terra.
O homem era
medroso mesmo, e por isso mesmo não havia como não qualificá-lo como a covardia
em pessoa, como o fraquejamento maior em forma de gente. Vara verde perdia de
tanto tremelico em qualquer besta situação. E o pior de tudo era que tentava a
todo custo passar a imagem do mais destemido e encorajado dos homens.
Por isso
mesmo, por pilhéria, sempre diziam estar diante daquele que fazia estremecer
bicho brabo e correr de medo as almas do outro mundo. Mas só em ouvir alusões a
coisas do outro mundo, o cabra já começava a amarelar, a fraquejar, a
estremecer, a querer se mijar todinho. Ouvir falar nos mistérios além da morte
era o maior tormento no Zé que a tudo temia da vida.
O coitado tudo
fazia para passar uma imagem de destemor. Falava em ser o maior vaqueiro de boi
valente, em ter enfrentado duas onças sem qualquer arma à mão, em ter apagado
no tapa as labaredas do fogo-corredor. E dizia que certa feita, quando todo
mundo se escondeu por causa de lobisomem de Semana Santa, foi ele quem colocou
rosário no cangote do bicho e o fez sumir pra nunca mais voltar.
Situação
periclitante quando exigiam provas de tamanha valentia. O homem avermelhava,
amarelava, perdia a cor, ficava em tremeliques, até se contentar em dizer que
nunca foi homem de mentiras. Então vinha um e dizia que corria solta a história
de que ele não podia ver uma barata que subia numa cadeira e gritava pela
mulher. E também que só saía ao quintal depois que a esposa lhe confirmasse não
haver nenhum piolho de cobra por ali.
Como não tinha
coragem de enfrentar ninguém, de responder à altura e chamar o outro pra briga,
então Zé Medroso saía soltando fogo pelas ventas e sempre dizendo que ia se
armar e depois voltar para dar cobro em gente mentirosa. Mas nada disso
acontecia. Apressava-se simplesmente para fugir de tantas afirmações sobre sua
reconhecida inapetência de enfrentamento de qualquer coisa.
Mas o medo
maior mesmo de Zé Medroso dizia respeito às coisas do outro mundo, das almas
mortas, das assombrações, dos fantasmas do além. Não podia sequer ouvir uma
conversa assim que não dormia de noite. Como a esposa já sabia do que se
tratava, então lhe preparava um chá e depois dizia que aquelas coisas não
existiam não, que podia dormir a sono solto que nenhuma alma do outro mundo
iria aparecer por ali.
Com a janela
do quarto entreaberta, bastou uma ventania mais forte para que fosse aberta de
vez e trazendo no seu sopro uma folha grande de amendoeira. Quando a folha caiu
por cima do homem, este deu um pulo tão grande que já caiu do lado de um
crucifixo. Com o objeto religioso à mão, foi logo dizendo que em nome do Senhor
aquela coisa ruim voltasse para onde nunca deveria ter saído. E não dormiu o
restante da noite, jurando por tudo na vida que aquilo não era folha seca de
jeito nenhum, mas uma mão seca que havia desapartado de alguma assombração.
De cemitério
queria distância. Se no mundo houvesse uma só estrada e esta passasse defronte
um cemitério, jamais ele iria a qualquer lugar. Também não tinha quem o fizesse
participar de velório e sentinela. Bastava que o sino da igrejinha badalasse
lentamente para anunciar o falecimento de alguém que Zé Medroso se metia
embaixo de panos e com o maior cuidado do mundo de tapar os ouvidos. Pessoa de
luto nem passasse perto dele. Não gostava nem de velas nem de flores, pois
dizia que lembravam cemitérios. Quem quisesse ver o homem quase morrendo
bastava dizer que um dia também ia pra debaixo da terra. Não dizia a ninguém
não, mas seu maior era a imortalidade.
Certa feita,
já conhecendo o medo do homem, um prosista lhe cruzou o caminho para dizer que
o finado Totonho queria ter uma conversinha com ele e por isso mesmo naquela
noite iria lhe visitar. Naquele momento Zé Medroso não deu qualquer importância
às palavras. Mas foi caminhando e pensando naquela possibilidade. Quanto mais
pensava mais suava frio, mais estremecia, mais sentia vontade de desmaiar. E o
medo se fez tão grande que adoeceu.
Chegou em casa
já aos molambos, fraquejando, quase caindo. Dois dias de cama pensando naquela
história da visita do finado. E nada de ficar bom, pois o pensamento lhe
consumia por dentro. Na noite desse segundo dia, eis que a esposa lhe chega
dizendo que um vizinho estava ali para uma visitinha ao amigo adoentado. Então
ele perguntou quem era, ao que a mulher respondeu: Totonho!
Coitado de Zé
Medroso. Ao ouvir esse nome se desfez em nada.
Escritor
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