*Rangel Alves da Costa
A velhice do passado é tão renovada na nossa memória, que a todo instante está colocando seu espelho perante a nossa recordação e o nosso olhar de agora. Contudo, só tem o dom de avistar aquele que valoriza as tradições de gerações a gerações, as raízes das manifestações culturais, os ofícios e os afazeres de um povo nos tempos idos.
Muito do antigo já não existe mais. O que foi perdido se deu principalmente pelo desinteresse dos mais novos e pela falta de preservação daqueles aos quais caberia a manutenção da riqueza artística e cultural de povos e comunidades. Hoje apenas raramente, mas ainda é possível avistar - principalmente nos encontros culturais - grupos folclóricos, folguedos e outras tradições. Observando-se sempre que geralmente são as pessoas de mais idade que insistem em preservar seu samba-de-coco, sua quadrilha, seu reisado, seu pastoril.
Nos dias de hoje, povoações de Poço Redondo como Sítios Novos e Guia, ainda possuem grupos folclóricos formados basicamente por pessoas já enraizadas no tempo. As recentes apresentações na sede da cidade demonstram a pujança motivadora desse povo e seu compasso na tradição. Muitas vezes, falta apenas um incentivo que desperte a continuidade ou mesmo uma pequena ajuda financeira para que os integrantes se sintam mais prestigiados e valorizados. Contudo, ante a ausência de qualquer ajuda de custo, o que se tem é a vontade pessoal em não deixar que sucumbam as tradições.
Mas nem tudo está perdido, principalmente considerando que o Xaxado na Pisada de Lampião, criado na cidade de Poço Redondo, vem - já desde muito - formando gerações de artistas da terra, contando também com um grupo infantil como aprendizado para ascensão ao grupo principal. E a povoação ribeirinha de Bonsucesso sempre se constituindo como um verdadeiro celeiro de grupos folclóricos formados por jovens e até crianças. De Bonsucesso Reisado, o São Gonçalo, a Cavalhada adulta e mirim, o Pastoril, dentre outras manifestações culturais.
Olhando muito mais além, contudo, reencontra-se aquilo que a juventude de agora sequer imaginou que pudesse existir. Certamente que hoje seria totalmente desprezado, discriminado, evitado a tudo custo. Basta ver, por exemplo, o que fizeram com os circos, com os palhaços, os picadeiros, as rumbeiras, os trapezistas, os cuspidores de fogo. Acaso apareça um pequeno circo pelos arredores da cidade, dificilmente um jovem estará disposto a conhecer sua arte mambembe. Até mesmo os pais só resolvem visitá-lo por que os filhos pequenos insistem em conhecer aquela coisa tão diferente.
Saibam, contudo, que pelos caminhos do sertão sergipano - e igualmente por todos os rincões nordestinos -, houve um passado glorioso de grandes circos, de artistas famosos cantando no picadeiro, de solitários artistas que chegavam trazendo sua mala de surpreendentes diversões, de brincantes forasteiros anunciando apresentações debaixo de lonas, de cantadores e repentistas que chegavam com suas violas debaixo do braço e se assentavam nas vendas e nas residências a dedilhar e a trovar os mais intrigantes desafios. Um sertão também de andarilhos e pessoas que simplesmente chegavam com um mundo de alegria em bonecos de madeira, arame e pano.
Muitos andarilhos cruzavam as estradas sertanejas e iam parando de cidade a cidade. Alguns retornavam tempos depois, tornando-se verdadeiros conhecidos das comunidades, mas outros apenas seguiam em frente. Aonde chegavam sempre mostravam um caderno indicando os locais por onde haviam passado, bem como milhares de assinaturas de pessoas que os ajudavam na caminhada aventureira. Perguntados por que assim viviam, indo de canto a outro sem fixar moradia, respondiam apenas que era pelo prazer do passo na estrada. Um e outro carregando livros, demonstrando serem inteligentes e até cultos. Outros levando cordéis e outros objetos para ajuda na caminhada. Batiam às portas, explicavam suas condições de andarilhos, recebiam alimentos e ajudas e logo se despediam.
Os artistas mambembes também eram costumeiros pelos sertões. Com trupe mista de bonecos e manipuladores, muitas vezes uma só pessoa, chegavam com seus personagens dentro de malas, armavam tendas e anunciavam os espetáculos. Muito famoso na região de Poço Redondo era o Cassimicoco de Julinho. Este senhor, visitando povoação a povoação, apresentava teatro de bonecos onde encontrasse um local para estender sua lona e tivesse quem desejasse assistir. Depois cada pessoa jogava um trocado numa bacia e cheia de contentamento saía após aplaudir a intriga entre o coronel de açoite e o sacristão com a cruz.
Já os repentistas fizeram parte de um auge onde as radiolas só aceitavam vinil e as feiras livres chamavam todo tipo de repentista. Além de cegos cantores e violeiros chegados de todos os lugares, muitos eram os discos de repentistas famosos espelhados em esteiras nos dias de feira. A aceitação era tanta que de vez em quando duplas de renome apareciam para pelejas ainda hoje inesquecíveis. Vozes e violas afinadas, os repentistas pediam que o povo desse o mote e daí em diante o que se ouvia era a maestria de uma arte tão criativa quanto original. E rima a rima, cada um rebatia o outro para o espanto e alegria geral.
Mas onde está tudo isso? Nas molduras do tempo, nas memórias, nos escritos que hoje guardam as recordações das artes, dos passos e dos ofícios de um povo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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