*Rangel Alves da Costa
Que dia mais esquisito é esse: dia do cachorro doido. Geralmente os cachorros endoidam qualquer dia, ficam raivosos a qualquer dia, danam-se em estripulias a qualquer dia. Mas ter um dia específico para endoidar é a primeira vez que ouço dizer.
Durante o período quaresmal dizem que é comum surgirem os lobisomens e outras esquisitices da noite. Também em diversas ocasiões aparecem os encantados, os fogos-corredores, as mulas-sem-cabeça, dentre outros. Mas essa história de cachorro doido?
Naquela manhã Sinhá Purcina sequer teve tempo de se ajoelhar direito perante o seu oratório. Sua preocupação maior desde a hora que levantou era a de fechar bem fechada cada janela e cada porta, pregando com ripa onde houvesse brecha maior. Por que tudo isso? Por causa do cachorro doido.
Naquela manhã não houve sino da igreja tocando nem preces e orações das velhas beatas na igreja. Ora, ninguém era doido de sair no meio da rua, fosse a qualquer hora do dia, por medo de que de repente se visse diante do tão temido cachorro doido. No silêncio o sino estava e assim ficou durante o dia inteiro.
A mocinha apaixonada, lacrimosa como sempre, estava mais desesperada ainda por que naquele dia não haveria sequer esperança de o carteiro chegar. E aflição somada à angústia de não poder abrir a janela e se derrear no umbral para derramar filetes amorosos. Quanto aperto naquele coração em frangalhos e mais ainda pelas razões desse tal de cachorro doido.
Quando um doido despercebido do perigo da situação, pulou o muro e danou-se para o meio da rua, foi um deus nos acuda. Ao invés de o insano jogar pedras, eram pedradas que recebia e vindas não se sabe de onde. Uma verdadeira saraivada de pedras para sair do meio da rua e retornar ao seu esconderijo. Ao invés disso, sumiu em correria que não se sabe onde foi parar.
A cidade inteira parecendo um deserto. Nenhum pé de pessoa que fizesse sombra. Ruas poeirentas que pareciam do outro mundo, folhagens que passavam ligeiro sendo levadas pela ventania. Nem pessoa nem gato ou cachorro normal. Também sem galinhas, galos ou qualquer outro bicho de estimação. Apenas um deserto esquisito e assustador.
Dentro das casas protegidas e quase fortificadas, as pessoas metidas debaixo das camas, dentro dos guarda-roupas, nos buracos cavados com antecedência. Os mais velhos, se apegando na fé, entrecruzavam os dedos entre rosários e orações, entre preces e rogos para que aquele dia do cachorro passasse logo e sem provocar o que mais se temia.
De repente se ouviu um barulho terrível, ribombento, aterrador. Em seguidos uivos alucinantes, berros apavorantes, gemidos agonizantes, urros endiabrados. O fim do mundo. Ou mais que isso. Diante de situação tão terrível, as pessoas se mijavam nas roupas, suavam de correr em rios, estremeciam feito vara verde tremelicante. Mãos levadas à boca e ao coração, as dores terríveis da agonia. Desmaios, chiliques, gritos sufocados por medo do cachorro doido.
Mas quem olhasse além das portas, no meio das ruas e além-esquinas, nada avistava de anormal, a não ser a ventania mais forte da estação e que ia espalhando restos de folhagens por todo lugar. Apenas isso. De resto apenas o medo injustificado nas pessoas. Ou justificado demais se forem consideradas as reais motivações daquele alvoroço todo.
Num tempo distante, em dia de sermão na igreja repleta de fervorosos fiéis, o velho vigário disse em alto e bom som que aquela vida pacata, porém segura e longe das maldades do mundo, não poderia ser ameaçada pela chegada do cachorro doido. E o termo cachorro doido para se referir ao forasteiro ou desconhecido que acaso ali chegasse.
Depois da missa não deu outra coisa, não se falou em nada mais senão no cachorro doido. E o pior que de tanto se falar, logo toda a população já havia assimilado a ideia de qualquer forasteiro como um verdadeiro cachorro doido.
E o cachorro doido, fosse ele quem fosse, ali chegaria para revirar o lugar de cabeça pra baixo, pra desonrar as mocinhas, para judiar dos mais velhos, para atanazar a vida de todo mundo. Por isso mesmo que ninguém sequer suporta ouvir em forasteiro.
Mas por que o dia do cachorro doido? Assim por que num dia da semana o trem chegava apitando na estação da cidade vizinha. Ali não chegava trem, ônibus, veículo, nenhum meio de transporte. E chegando lá podia se dirigir até aquele lugar.
O dia era sexta-feira. O dia da chegada do trem na vizinha estação. Por isso que tanto se temia que um forasteiro ali descesse e mais tarde despontasse na estrada. E feito cachorro doido acabasse com toda paz e todo sossego.
Escritor
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