*Rangel Alves da Costa
O relógio do sertanejo é ele mesmo que faz, sem precisar de máquina ou ponteiro algum. Conhece o tempo pela sua cor, pela réstia do sol, pela fresta da janela, pelo silvar da ventania.
Não precisa dizer que horas são, ou que faltam tantos minutos para isso ou aquilo. Está no olhar o relógio do sertanejo. Mais que biológico, é um relógio nascido na precisão e na pressa de fazer.
Mas também é uma hora diferenciada. Horário de comer é quando a fome bater, horário de voltar da roça somente quando o cansaço chegar, horário de abrir ou fechar a porta somente quando há necessidade de se fazer assim.
No meio da noite, em plena escuridão, e um canto de grilo lhe informa a hora exata. Bem assim com o zunir da ventania, com o rebuliço no quintal, com qualquer som ouvido lá fora. Não olha para o relógio. Não precisa. Apenas sabe a hora da hora.
“Num acustumo douto jeito não sinhô...”. Diz Zezé Nhôzinho, sertanejo de valia sem igual. E prossegue: “Penso inté que o galo se espanta quano abro a porta da cozinha em direção ao quintá. Tudo santo dia faço ansim...”.
E diz mais: “Que teja de chuvarada ou tempo aberto, nem bem a madrugada se vai e já arrasto meu pé em busca do que fazê. E o que num farta é o de fazê. Faço benzenção perto do santo, entonce só daí me vejo preparado pro dia...
E vai: “Joaninha finge que aina drome, mai sei que num drome não. Logo já tá ajoeiada juntim do oratoro. Reza pelos fio, pela famia, pela terra, pelo bicho, pru tudo. Joaninha nada faz sem Padim Ciço na boca, nada ressorve sem Frei Damião Capuchim.
Prosseguindo: “O canto do quarto inté parece um céu. Mai acho bonito que Joaninha seja ansim. Quem vive sem fé, num é mermo? Eu mermo sô devoto de São José, pai de Jesus e do sertanejo, ansim cuma eu. Bem ansim começa o dia, aina no breu do madrugá...
E vai dizendo: “Mai num tem outo jeito não. O seuviço num dá fuga a gente não. O pão da mesa tá na terra, tá no mato, tá no lombo do bicho, tá toca e na vereda. O sertanejo tem de ir atrás do seu pão, pur isso que bem a luz do dia aparece eu já tô trabaiano...”
“Aceno o fogo de lenha, torro um naquinho de toucim, frevo um café, misturo tudo no bucho e pronto. Quano o sol ser alevanta eu já me fiz de fazê. E pa vortá mai cedo e incrontá na mesa aquilo que Deus quiser. O que é riqueza na mesa do sertanejo, meu sinhô?”
“O pão. O pão que é o feijão, o pão que é a tripa, o pão que é o ovo, o pão que é o naco de carne, o que tiver. E adespois agardecê a Deus. Só Deus que num vai deixa fartá o de comer de amanhã. E tomem Padim Ciço, Frei Damião Capuchim e o meu São José. E José tomem sou. Sertanejo tomem sou. Garças a Deus”.
Então abre a porta e vai para a vida dura. Mas tão cheio de contentamento que mais parece um agraciado de tudo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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