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quarta-feira, 6 de março de 2019

A GUERRA DO CANGAÇO


Por Semira Adler Vainsencher



O banditismo parece ser um fenômeno universal. É difícil encontrar um povo no mundo que não teve (ou tenha) bandidos: indivíduos frios, calculistas, insensíveis à violência e à morte. Sem entrar no mérito das atrocidades cometidas pelos colonizadores portugueses, que escravizaram os negros africanos e quase exterminaram os índios nativos do país, a região Nordeste do Brasil vivenciou um período de quase meio século de violência, especialmente no final da década de 1870, após a grande seca de 1877.


O monopólio da terra e o trabalho servil, heranças das capitanias hereditárias, sempre mantiveram o empobrecimento da população e impediram o desenvolvimento do Nordeste, apesar do empenho de Joaquim Nabuco e da abolição da escravatura. As pessoas continuam sendo relegadas à condição de objetos, cujo maior dever é servir aos donos de terras.

Enquanto o capitalismo avançava nos grandes centros urbanos, no meio rural persistia o atraso da grande propriedade: a presença do latifúndio semifeudal, elemento dominador que, da monarquia à república, se mantém intocável em seus privilégios. Os problemas das famílias abastadas são resolvidos entre si, sem a intervenção do poder do Estado, mas com a substantiva ajuda de seus fiéis subordinados: policiais, delegados, juízes e políticos.

As relações pré-capitalistas de produção se conservam: os trabalhadores rurais se tornam meros semi-servos. E o dono da terra - o chamado "coronel" - representa o legítimo árbitro social, mandando em todos (do padre à força policial), com o apoio integral da máquina do Estado. Contrariar o coronel, portanto, é algo a que ninguém se atreve.
É importante registrar também a presença dos jagunços, ou capangas dos "coronéis", aqueles assalariados que trabalham como vaqueiros, agricultores ou mesmo assassinos, defendendo com unhas e dentes os interesses do patrão, de sua família e de sua propriedade.

Diante das relações semifeudais de produção, da fragilidade das instituições responsáveis pela ordem, lei e justiça, e da ocorrência de grandes injustiças - homicídios de familiares, violências sexuais, roubo de gado e de terras, além de secas periódicas que vêm agravar a fome, o analfabetismo e a pobreza extrema, os sertanejos buscaram fazer justiça com as próprias mãos, gerando, como forma de defesa, um fenômeno social que propagava vinganças e mais violências: o cangaço.

Fora o cangaço, dois outros elementos que surgem nos sertões nordestinos são o fanatismo religioso e o messianismo, a exemplo de Canudos (na Bahia) com Antonio Conselheiro; de Caldeirão (na chapada do Araripe, município do Crato, no Ceará) com o Beato Lourenço; e dos seus remanescentes em Pau de Colher, na Bahia. O cangaço, o fanatismo religioso e o messianismo são episódios marcantes da guerra civil nordestina: representam alternativas através das quais a população regional pode retaliar os danos sofridos, garantir um lugar no céu, alimentar o seu espírito de aventura e/ou conseguir um dinheiro fácil.

O cangaço nasceu no século XVIII, lapso de tempo em que o sertão não havia sido ainda desbravado. Já naquela época, o cangaceiro Cabeleira atacou o Recife, mas foi preso e enforcado. Da Ribeira do Navio, no Estado de Pernambuco, surgiram, também, os cangaceiros Cassemiro Honório e Márcula. Essa atividade se tornou uma profissão lucrativa, tendo surgido, então, alguns grupos que roubavam e matavam nas caatingas, a exemplo dos irmãos Porcino e Antônio Quelé. No começo da história, eles representavam grupos de homens armados a serviço dos poderosos coronéis.

Em 1897, surge o primeiro cangaceiro importante: Antônio Silvino. Com fama de bandido cavalheiresco, que respeita e ajuda muitos, ele atua, durante 17 anos, nos sertões de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. É preso pela polícia pernambucana em 1914. Um outro cangaceiro famoso é Sebastião Pereira (chamado de Sinhô Pereira), que forma o seu bando em 1916. No começo do século XX, frente ao poder dos coronéis e à ausência de justiça e do cumprimento da lei, tais indivíduos entram no cangaço com o propósito de vingar a honra de suas famílias.

Para combater esse novo fenômeno social, o Poder Público cria as "volantes". Do ponto de vista dos cangaceiros, eles eram, simplesmente, os "macacos". E tais "macacos" atuavam com mais ferocidade do que os próprios cangaceiros, criando um clima de grande violência em todo o sertão nordestino.

Por outro lado, a polícia chama de coiteiros todas as pessoas que, de alguma forma, ajudam os cangaceiros. Os residentes no interior do sertão - moradores, vaqueiros e criadores, por exemplo - se inserem, também, dentro dessa categoria.

Sob ordens superiores, as volantes passam a atuar como verdadeiros "esquadrões da morte", surrando, torturando, sangrando e/ou matando coiteiros e bandidos. Se os cangaceiros, portanto, ao empregar a violência, agem completamente fora da lei, as volantes o fazem com o apoio total da lei.

Nesse contexto, surge a figura do Padre Cícero Romão Batista, apelidado pelos fanáticos de Santo de Juazeiro, que nele vêem o poder de realizar milagres e, sobretudo, uma figura divina. Endeusado nas zonas rurais nordestinas, o Padre Cícero concilia interesses antagônicos e amortece os conflitos entre as classes sociais. Em meio a crendices e superstições, os milagres - muitas vezes, resumidos a simples conselhos de higiene ou procedimentos diante da subnutrição - atraem grandes romarias para Juazeiro, ainda mais porque os seus conselhos são gratuitos. O Santo de Juazeiro, contudo, a despeito de ser um bom conciliador e uma figura querida entre os cangaceiros, utiliza a sua influência religiosa para agir em favor dos "coronéis", desculpando-os pelas violências e injustiças cometidas.

Em meio a essa turbulência, surge o mais importante de todos os cangaceiros e quem mais tempo resiste (cerca de vinte anos) ao cerco policial: Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, também chamado rei do cangaço e governador do sertão. Os membros do seu bando usam cabelos compridos, lenço em volta do pescoço, grande quantidade de jóias e um perfume exagerado. Seus nomes e alcunhas são os seguintes: Antônio Pereira, Antônio Marinheiro, Ananias, Alagoano, Andorinha, Amoredo, Ângelo Roque, Beleza, Beija-Flor, Bom de Veras, Cícero da Costa, Cajueiro, Cigano, Cravo Roxo, Cavanhaque, Chumbinho, Cambaio, Criança, Corisco, Delicadeza, Damião, Ezequiel Português, Fogueira Jararaca, Juriti, Luís Pedro, Linguarudo, Lagartixa, Moreno, Moita Braba, Mormaço, Ponto Fino, Porqueira, Pintado, Sete Léguas, Sabino, Trovão, Zé Baiano, Zé Venâncio, entre outros.

Vale ressaltar que um fator decisivo para o extermínio do bando de Lampião é o uso da metralhadora, que os cangaceiros tentam comprar, mas não obtêm sucesso. No dia 28 de julho de 1938, Lampião é atacado de surpresa na grota de Angico, local que sempre julgou como o mais seguro de todos. O rei do cangaço, Maria Bonita, e alguns cangaceiros são mortos rapidamente. O resto do bando consegue fugir para a caatinga. Com Lampião, morre também o personagem histórico mais famoso da cultura popular brasileira.

Naquela época, o cangaço já se encontra em plena decadência e, com Lampião, morre também a última liderança desse fenômeno social. Os cangaceiros que vão presos e cumprem pena conseguem se reintegrar no meio social. Alguns deles são: José Alves de Matos (Vinte e Cinco), Ângelo Roque da Silva (Labareda), Vítor Rodrigues (Criança), Isaías Vieira (Zabelê), Antônio dos Santos (Volta Seca), João Marques Correia (Barreiras), Antônio Luís Tavares (Asa Branca), Manuel Dantas (Candeeiro), Antenor José de Lima (Beija-Flor), e outros.

Por fim, registram-se informações sobre alguns ex-cangaceiros que retornam ao convívio social. Tendo fugido para São Paulo, depois do combate na grota de Angico, Criança adquire casa própria e mercearia naquela cidade, casa-se com Ana Caetana de Lima e tem três filhos: Adenilse, Adenilson e Vicentina.

Zabelê volta para o roçado, assim como Beija-Flor. Eles continuam pobres, analfabetos e desassistidos. Candeeiro segue o mesmo rumo, mas consegue se alfabetizar.

Vinte e Cinco vai trabalhar como funcionário do Tribunal Eleitoral de Maceió, casa com a enfermeira Maria de Silva Matos e tem três filhas: Dalma, Dilma e Débora.

Volta Seca passa muito tempo preso na penitenciária da Feira de Curtume, na Bahia. É condenado, inicialmente, a uma pena de 145 anos, depois comutada para 30 anos. Através do indulto do presidente Getúlio Vargas, porém, em 1954, ele cumpre uma pena de 20 anos. Volta Seca se casa, tem sete filhos e é admitido como guarda-freios na Estrada de Ferro Leopoldina.

Conhecido também como Anjo Roque, Labareda consegue se empregar no Conselho Penitenciário de Salvador, casa e tem nove filhos.

E, intrigante como possa parecer, o ex-cangaceiro Saracura torna-se funcionário de dois museus, o Nina Rodrigues e o de Antropologia Criminal, os mesmos que expuseram as cabeças mumificadas dos velhos companheiros de lutas.

FONTE: FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
Do texto Cangaço
De: Semira Adler Vainsencher

Adquiri na página do pesquisador José João Souza

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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