Capítulo
VI A morte de Lampião Aquêle ôlho terrível que nos fitava no fundo da história
do sertão...
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em tema: "Capítulo VI A morte de Lampião Aquêle ôlho terrível que nos
fitava no fundo da história do sertão..."— Transcrição da apresentação:
2 Capítulo
VI A morte de Lampião Aquêle ôlho terrível que nos fitava no fundo da história
do sertão...
3 Lampião
põe Luis Carlos Prestes para correr do Ceará Virgulino Ferreira da Silva, o
Capitão Lampião, que juntamente com seu braço direito Cristino da Silva Cleto,
o Capitão Corisco, que receberam a missão do padre Cícero Romão Batista
através de seu porta voz Floro Bartolomeu, de combater a coluna Prestes.
Prestes, quando soube que o Capitão do nordeste se encontrava preparado para o
enfrentamento, mudou a rota e partiu em retirada sendo perseguido por Lampião
que o obrigou a fugir, a fim de não ter que passar pelo vexame de ser derrotado
e humilhado pelo Capitão do Sertão. Corisco/Lampião.
4 Alguns
argumentos em prol do envenenamento Depoimento espontâneo e corajoso do coronel
JOSÉ ALENCAR DE CARVALHO (Senhorzinho Alencar), oficial reformado da Polícia
Militar de Pernambuco, que durante dez anos enfrentou Lampião em combates
memoráveis: — "Essa questão de envenenar Lampião era velha. Vendo, dia a
dia, agravar-se o problema do cangaço, os chefes de volantes queriam acabar com
o terrível bandoleiro de qualquer maneira.. A ordem que vinha de cima
(Getúlio), era para liquidar com ele. Desconfiado, ligeiro, ágil como cabrito
novo, Lampião escapava sempre dos cercos da polícia. Daí a solução rápida,
embora ilegal: a morte pelo envenenamento. E muitos chefes de volantes pensaram
assim:
5 -
MANUEL NETO, dos mais heróicos combatentes contra o cangaceirismo, procurou
comprar coiteiros para envenenar Lampião. “Eu mesmo, certa vez, prometi vultosa
fortuna a uma velha, da inteira confiança de Virgulino, se ela fizesse o Rei do
Cangaço beber de um vinho que eu lhe dera ". - Dois episódios em que o
coronel Alencar, provando que ninguém jamais pegou Lampião desprevenido,
corrobora o propósito geral de matá-lo com veneno: a) "Sabendo que ele
(Lampião) tinha desejos de pegar um seu inimigo, fiz do mesmo uma espécie de
cobaia. Coloquei-o na fazenda de certo parente de onde ele passou a mandar
insultos e recados a Lampião, convidando-o a brigar. A resposta do bandoleiro
foi esta: — "Você está muito fácil. Aguardo uma oportunidade mais
difícil". Como se adivinhasse que ali perto eu me achava, pronto para
atacá-lo pela retaguarda.
6 b)
"De outra vez, no encalço de Lampião, encontrei-me com um vaqueiro que
disse saber onde ele estava escondido. Numa casa abandonada, a dez léguas dali,
ele tratava de Antônio Rosa, um de seus cabras de confiança, atacado de febre.
Guiados pelo vaqueiro, andamos toda a noite. Ao amanhecer, estávamos diante da
casa. Mas, que surpresa! As árvores próximas estavam crivadas de balas.
Xique-xiques e mandacarus decepados por forte tiroteio. Soube, tempos depois,
que a sentinela de Lampião, despertada alta noite por um barulho que vinha do
mato, alertou o bando. Abriram tiroteio cerrado e terminaram por fugir. A causa
do barulho: um bode que pastava nas proximidades. Foi um simples bode, mas
podia ser a volante. Lampião não facilitava nunca". 2. Em PARIPIRANGA, BA,
a polícia envenenara toda a comida que Lampião, acampado perto dali, mandara
comprar. Somente no dia seguinte iria ele mandar dividir esses mantimentos com
os cabras. De manhã, porém, a polícia, em erro de tática, vexou-se em atacá-lo,
travando-se tiroteio. Descoberto que a comida estava envenenada, Lampião bateu
em retirada deixando-a aos soldados...
7 3. Pouco tempo antes de Angico havia João
Bezerra afirmado a Mane Neto que iria exterminar Lampião a veneno. Pondo de
lado o despeito de Mane Neto em não ter podido jamais matar nenhum dos irmãos
Ferreiras, os quais, ao contrário, lhe mataram quinze nazarenos, sendo nove
familiares, o certo é que, na polêmica mantida na imprensa entre esses dois
oficiais, terminou João Bezerra confirmando que "nenhum governo estipulou
a espécie de morte que seria aplicada a Lampião". Depois veio ele querendo
escamotear dizendo: — "Envenenar Lampião teria sido um prazer, se tivesse
tido essa grande oportunidade!" 4. PEDRO CÂNDIDO esteve badalando que
botou veneno (Cf. Adendo II).
8 5. O cangaceiro Zé Sereno, em entrevista ao
Correio da manhã, do Rio de Janeiro, a 28 de julho de 1971, caderno Anexo,
recordando a tragédia de Angico, assim se exprime: — "O, coiteiro (Pedro
Cândido) chegou com os alimentos envenenados a mando da volante, menos três
litros de pinga que, normalmente, ele próprio, o coiteiro, deveria ingerir em
pequenas doses para provar sua confiança (...) minha suspeita com Pedro de
Cândido confirmou-se depois que ele se foi (...) Apanhei um LITRO DE VERMUTE
Cinzano e notei um pequeno buraco na rolha, provavelmente feito por uma
seringa. Chamei Lampião e disse-lhe: — “O SENHOR É CEGO DE UM OLHO, MAS PODE
VER QUE ESTA BEBIDA ESTÁ ENVENENADA"'.
9 6. Padre José Kehrle ouviu o SOLDADO
VICENTE, integrante da volante de Angico, afirmar — "Até com
juramento!" — que Lampião fora envenenado. 7. José Francisco do
Nascimento, vulgo ZEZINHO BARBA AZUL, casado em Catende, PE, donde é natural,
atualmente residindo em Caruaru. Origem curiosa de seu apelido: deixou a mulher
que prevaricara e foi arranjando outras até completar o número de seis,
incluindo a esposa. Com o caso da perda da esposa, perdera também o medo do que
quer que seja e adquiriu a tal coragem motivada pelo estado de desespero em que
ficara. Em certas ocasiões, chegou a brigar com Lampião perto, enquanto seus
"colegas de farda se mijavam de medo"! Afirmando enfim, "com
toda a certeza", que Lampião não foi morto a bala.
10 8. O coronel SENHORZINHO ALENCAR, após
ouvir minucioso relato de um ex-volante de Angico e de examinar cuidadosamente
o fato, declarou de público: — "Acredito firmemente na hipótese do
envenenamento de Lampião". 9. O tenente ANICETO RODRIGUES, um dos
principais componentes da Tragédia de Angico, igualmente levantou suspeição
(daí por que João Bezerra omite seu nome no livro Como dei cabo de Lampião). 10.
O coronel LUCENA, fugindo a um inquérito, que seria contundente, para decidir a
questão, saiu-se com esta: — "É tarde demais!" (cf. mais adiante,
Adendo II b).
11 11. Os onze cadáveres foram encontrados
numa área apenas de vinte e cinco metros quadrados, não havendo sinal de terem
sido arrastados por ali. Indício de que, reunidos para o café, foram ao menos
mais da metade dos cangaceiros, caindo envenenados dentro desse reduzido
espaço. Em luta teriam sido mortos sim, mas dispersos. Por isso o coronel
MANUEL NETO em carta aberta na imprensa: — "Não acreditei e continuo
desacreditando, porém, na possibilidade de haver sido Lampião e seu grupo, abatidos
como porcos, num único combate e no mesmo chiqueiro, registrando-se, apenas,
uma baixa na tropa que o enfrentou". E concluía: "Lampião não era um
covarde, um inexperiente para se deixar abater tão facilmente...“ 12. Assim,
também, o historiador sertanejo ULISSES LINS, tão escrupuloso da verdade:
"... para que todos fossem mortos a bala, fora necessário todos juntos...
como passarinhos na bebida..."
12 13.
Outro historiador, RODRIGUES DE CARVALHO, no seu livro Serrote preto, é pelo
envenenamento. 14. ANTÔNIO SILVINO, velho cangaceiro muito experimentado, não
acreditou em combate e até pilheriou dizendo que Lampião e seus homens estavam
"dormindo"... 15. URUBUS MORTOS. Sob a orientação dos professores
drs. José Joaquim de Almeida e Aníbal Firmo Bruno, formou-se, na Faculdade de
Direito do Recife, uma comissão de estudantes segundanistas do curso de
bacharelado, a qual, para conseguir facilidades em Alagoas, tomou o nome de
Comissão Acadêmica Coronel Lucena, com a finalidade de visitar e estudar os
resultados da Tragédia de Angico in loco. Compunha-se a caravana de seis
acadêmicos: Edson Cantarelli Caribe (presidente), Wandenkolk Wanderley, Plínio
Inácio de Sousa, Haroldo de Melo, Décio de Sousa Valença e Alfredo Pessoa de
Lima. A este incumbia apresentar ao interventor de Pernambuco o relatório da
missão. Agamenon Magalhães arranjou as passagens, ida e volta, de trem, a
Maceió. Edson voltou de Quipapá, alegando não poder fazer face a certas
despesas, enquanto os outros prosseguiram, chegando, no mesmo dia 3, a Maceió,
onde entraram, de imediato, em entendimento com as autoridades.
13 Partiram
dali em caminhão que levava tropa. Viagem sacrificosa e morosa por estradas
carroçáveis, em péssimas condições de conservação, no itinerário de Santana de
Ipanema, Pão de Açúcar (onde dormiram na casa do delegado Tenório) e
Entremontes, e daí para Angico, em canoa e a pé, como ainda hoje. Nove dias
fazia que os cadáveres estavam insepultos! Não se contendo de indignação o
ardoroso Alfredo Pessoa de Lima improvisou ali mesmo uma espécie de discurso
libelo muito comovente censurando aquele "crime da polícia". Deixando
de lado o Relatório desse acadêmico (trechos publicados no Caderno acadêmico,
setembro de 1942, p. 97-111), vazado em rebuscada linguagem eivada de pruridos das
teorias lombrosianas tão em moda na época, o que mais importa é seu depoimento
pessoal como testemunha ocular: — "Lampião e seus sequazes foram
envenenados. A prova peremptória está nos urubus mortos junto aos corpos putre
jactos". Outro acadêmico que, junto com Décio Valença, vencendo a
repugnância, se aproximou mais do local para observar melhor. Wandenkolk
Wanderley, chegou à mesma conclusão. Mais de vinte anos depois, esse
destemeroso advogado criminalista, provocado em debate, declarava:
14 —
"Eu vi com meus próprios olhos, visitando o local, alguns urubus mortos,
cinco ou seis, caídos junto aos corpos dos cangaceiros. Devorando as víceras
dos bandoleiros (ou os alimentos envenenados), eles também se envenenaram pelo
arsênico". E, concluindo: — "A versão dada pela polícia do então
tenente João Bezerra não passaria de conversa preparada para iludir crianças. O
tal combate não se teria registrado, uma vez que os cangaceiros não podiam mais
resistir. Chegando ao esconderijo de Lampião, os soldados teriam encontrado
homens moribundos, morrendo sob o efeito do arsênico. Tiveram apenas o trabalho
de acabar de matá-los, degolando-os em seguida".
15 16. Mas, antes dessa comissão de
acadêmicos, quem primeiro esteve no coito de Angico foram o repórter Melquiades
da Rocha e o fotógrafo Maurício Moura, enviados do jornal A noite, do Rio, os
quais encontraram os corpos decepados e os urubus mortos. Mais interessante
ainda é que encontraram um vidro contendo pó amarelo. O médico do 2º Batalhão
de Policia de Alagoas, dr. Arsênio Moreira, verificou que era estricnina.
Remetido para o Rio, o chefe do gabinete de Investigações e pesquisas
científicas da Polícia, Antônio Carlos Vila Nova (atual diretor da Polícia
Técnica de Brasília, ano de 1962), confirmou o veneno — estricnina! O frasco,
talvez, caído inadvertidamente do bolso de Pedro Cândido. Daí sua grande
preocupação se o plano falhasse.
16 17. "VOX
POPULI"... O autor deste trabalho, nomeado vigário de Tacaratu de 1942 a
1945, percorrendo aquela região toda — de Itacuruba ao vale do Ipanema, das
catingas do Navio e Moxotó às ribeirinhas cidades de Piranhas, Pão de Açúcar,
Traipu e Própria, dos vastos sertões baianos, a começar de Juazeiro, passando
por Curaçá, Chorrochó, Jeremoabo e Glória, ao pequeno sertão sergipano — não
encontrou outra opinião senão esta: — Lampião morreu envenenado! 18. O prefeito
de Pão de Açúcar, AL, Joaquim Rezende, afirmou ao cantor Sílvio Caldas que
Lampião fora envenenado em Angico, antes do tiroteio. 19. Ainda está vivo o
ex-cangaceiro Chá Preto, Eldi Antônio de Oliveira, co-participe da Tragédia,
para afirmar que Lampião foi envenenado.
17 20. O celebrado historiador polemista,
Otacílio Anselmo, autor de Padre Cícero — mito e realidade, está escrevendo um
livro, fundamentado em longo e cuidadoso trabalho de pesquisa e centenas de
depoimentos fidedignos, provando que Lampião foi envenenado. Revelando ainda
que o laudo médico da morte de Lampião — inicialmente — atestou a presença de
veneno e deu como causa mortis o envenenamento! O resultado desse exame, no
entanto, foi mantido em sigilo! (Supondo o autor que para não prejudicar o
Turismo). Não teria havido, porém, outro motivo mais forte? Não teria sido por
razão política — de exaltação das autoridades e da polícia? 21. O sargento
Manuel Bento declarou que "foi a maior covardia do tenente Bezerra fazer o
que fez com Lampião, que era homem para morrer brigando no campo e não
envenenado".
18 Depoimento
básico sobre o envenenamento Um testemunho de máxima importância no ato supremo
da Tragédia de Angico. Suficiente por si só, caso não bastasse os outros, que
urdiram o texto deste capítulo — o mais intrincado e difícil de escrever — e os
vinte e um argumentos anteriores em prol do envenenamento (Adendo II). Os
cangaceiros do coito sobreviventes, distantes do local onde tombaram as
vítimas, na surpresa e confusão do momento, quase nada sabem dizer. Conseguiu o
autor anotar o depoimento, abaixo fielmente trasladado, mediante compromisso de
não comprometer o declarante. Agora, trinta anos depois, com a prescrição legal,
quase tudo pode ser revelado.
19 Do
padre Magalhães, vigário de Geremoabo, esta declaração pessoal ao autor: —
"Posso afirmar ex-fide que Lampião morreu envenenado". Ex-fide,
expressão jurídico-canônica ajuramentaria, como se dissesse: "Juro diante
de Deus", diferente do sentido jurídico-civil, que é apenas atestatório. O
mesmo pode dizer o autor a respeito do presente depoimento. As circunstâncias
de ordem psicológica e sacramentai conferem ao depoimento valor incontestável,
dir-se-ia absoluto, e invalidam o princípio jurídico do testis unius. Tão
impressionante depoimento tornou-se o ponto de partida determinante do
interesse das pesquisas do autor sobre Lampião.
20 O
sono de Lampião Lampião nunca dormia com o grupo. Desconfiado por natureza,
ficava separado, sozinho. Um dos cabras de sua inteira confiança, muitas vezes
escolhido na hora, chamado por ele de "sentinela-do-sono", lhe
montava guarda. Perigos de fora e, pior ainda, de dentro havia, se se
oferecesse fácil ocasião. Espreitavam-lhe a ambição de lhe tomar a chefia geral
do cangaço, a glória de ser seu matador, o prêmio de cinqüenta contos de réis
oferecido por sua cabeça... Numa comunidade humana tudo pode acontecer. A
vigilância teria de ser "eterna".
21 O
sono de Lampião Aliás, o bando não dormia todo junto, não. Por ordem tática de
Lampião, formavam-se grupos de dois ou três, espalhados, não longe uns dos
outros. Assim, difícil o aniquilamento sob um ataque de surpresa. Desde Maria
Bonita, quando o cangaço foi aberto às mulheres, essas normas se tornaram mais
severas, principalmente quanto aos casais. Nenhuma promiscuidade. A moral era
rigorosíssima!
22 O
começo Quando ele se apresentou era moço ainda, mas de cenho fechado no
apardavasco da pele e com ar de espanto. No antes, porém, era "menino
saído". De família humilde, mas honrada, vivendo dos roçados e de umas
poucas de criações, além da vaquinha amojada com bezerrinho, e do cavalo de
fazer feira. Os irmãos, antes e depois dele, não vingaram sequer um mês. Apenas
lhe fazia par a irmãzinha, mais nova do que ele, então na adolescência. Um dia,
desses que surgem repetindo a mesma história, um triste acontecido virou o
juízo e a pacatez do moço. Na ocasião em que a menina se achava sozinha em
casa, veio, sorrateiro, um tarado soldado da polícia e boliu com ela, à força.
Acobertado pela farda e pela justiça, nem um padre nosso teve de penitência,
continuando nas suas funções e maldades. Pouco depois, o irmão vingava a honra
da família, esfaqueando o miserável cujo nos braços de uma mulher separada.
Agora sim, a justiça enxergou e descobriu o criminoso — ele! E dos piores,
porque matara uma "autoridade"! Caçado pela polícia, foi recebido por
Lampião, que lhe trocou o nome por um de guerra — Paturi, a fim de evitar
perseguições à sua família e forjou-o cangaceiro de sua confiança.
24 O
relato Eis o seu depoimento, aliás muito cru, tomado naqueles idos de 1942,
quatro anos da morte de Lampião fazendo. Foram eliminadas repetições inúteis e
digressões supérfluas. O linguajar, fonético e sintático, corrigido, deixa,
entretanto, transparecer, raramente entre aspas, palavras e expressões comuns
no sertão. Pausadamente e, por vezes, angustiado, assim falou: "Naquela
derradeira noite do Capitão, eu fui escolhido para sentinela-do-sono. Tarde da
noite, o Capitão e Maria Bonita, que estavam nas melodias, assopraram o candeeiro
para dormir. Noite fria, serenando, estiando, serenando, assim...
25 Quando
foi de madrugada, ainda escuro, Maria Bonita saiu da barraca, acendeu o fogo
para ferver água na panela de barro. Botou dentro pó de café e pequenos tacos
de rapadura. Logo o Capitão apareceu, de manga de camisa, escovando os dentes,
de junto de uma pedra grande defronte da barraca. Alguns cangaceiros foram se
achegando, sem armas, caneco na mão, para o café ali fumaçando. Devia começar
primeiro pelo Capitão, era o chefe. Ele encheu o caneco e bebeu ligeiro, sem
carne assada e farinha, sem nada, puro. Adespois os outros foram fazendo o
mesmo. A gente tinha de viajar logo.
26 A hora do café...
27 De
repente, o Capitão soltou o caneco no chão. Parece que sentiu gastura, porque
passou a mão rodando pela barriga. Deu uns passos largos, sem prumo e caiu na
rede ainda armada na barraca. Deitou só o corpo, as pernas caídas do lado de
fora. Eu ajutorando Maria Bonita a juntar os troços, que a gente ia sair cedo,
vi tudo. Ela se queixava de dor de cabeça e os beiços queimando. Dizia que foi
adepois que 'exprementou' o café para ver se estava bom de doce, um tiquinho de
nada molhado e 'ponido' na palma da mão para lamber. Aí, eu avisei a Maria
Bonita. Ela, deixando a bacia, correu para ver. Eu corri também. Chegou logo
Luís Pedro e Vila Nova. Num instante, o Capitão virou a bola do olho para riba,
ficando só o branco, e abriu a boca. Uma gosma suja, com escuma, saía
escorrendo do canto da boca. Luís Pedro olhou o pulso e o coração e disse: —
'Tá morto!' Chorando, ele tapou com as mãos os olhos do Capitão e apanhou o
chapéu dele. Aí eu disse: — 'É veneno!' Maria Bonita, aperriada, sacudiu a
cabeça dele e os ombros. E ele sem ação, morto de mesmo. Tive, na hora, o maior
desgosto de minha vida, os olhos chorando. Maria Bonita, coitadinha!, toda
agitada e desesperada, gritou: — 'Virgulino morreu!' Eu gritei repetido: — 'O
Capitão morreu! O Capitão morreu!'
28 Mergulhão,
que estava deitado no pé da caraibeira, levantou-se todo espantado e perguntou
alto: — 'O Capitão morreu?' Aí eu vi logo cangaceiros cair ali, de todo jeito,
para frente, para trás, para os lados, de dejunto da panela de café. Maginei
comigo mesmo: — 'O veneno era forte que era danado!‘ Eu acho que algum macaco
da volante emboscada, com os gritos e os mexidos no coito, passou fogo em
Amoroso. Ele tinha ido ver água talvez para o Capitão banhar o rosto. E quaje
igual, outro tiro, que pegou Mergulhão. Atrás veio logo uma trovoada de bala!
Aquele despotismo que nem deu tempo mais de pensar! Aí era o causo de se salve
quem puder, como diz o outro. Assim de surpresa, bala para todo lado e naquele
cafus, como era que a gente podia tomar posição e brigar? Aí me soquei dentro
de um buraco comprido e baixo, que eu sabia. Lampião
29 Ficava
no pé do morro, 'próchimo' da gruta e atrás da barraca do Capitão. O buraco só
dava para caber o corpo pragatado, a barriga no chão, sem poder se virar mais,
muito apertado. Na frente tinha moita de mato tapando. Fiquei aí, os braços
incomodados, não tinha posição para botar eles. Mesmo querendo, eu não podia
sair dali. Do lado de fora era bala por todo canto zinindo. Adespois, as pernas
ficaram 'drumentes', moles, bambas só mulambo. Fiquei sem mexer. Mexia só os
olhos e o baticum do coração. O resto estava morto. Vi a hora das balas me
pegarem. Deixa que chegaram a açoitar a moita. Foi Deus e a Santíssima Virgem
que me livraram. Dali de bem de riba, eu fiquei pombeando tudo pela brecha que
fiz na moita.
30 O
horror era grande! As balas vinha de magote. Foi torada de bala a rede do
Capitão, que caiu com todo o peso no chão. O pano da coberta da barraca avoou,
ficando só as varas. Vi Mergulhão cair. Adespois foi Maria Bonita caindo, as
mãos cheias de sangue apertando a barriga. Luís Pedro deu uns tiros, mais
arriou logo. Vila Nova correu. Não deu tempo de ninguém brigar. Não teve
'loita', não. Possa ser que mais algum cabra de lá de riba do riacho desse
besteira de tiro, sem palpite, à toa. A gente e o riacho todinho se acabando na
bala. Não posso dizer nem o que foi. Era a confusão do inferno! Mas, não
demorou muito tempo, não. Foi ligeiro, ligeiro... coisa de meia hora.
31 Quando
tudo parou de atirar, começou a chegar macaco de todo lado, quer dizer, de riba
do alto das Perdidas e beirando o pé da Imburana, passando 'dadonde' eu estava,
coisa de duas braças. Eles vinham se achegando devagar, com medo. Um volante,
sem ser alto, caboclo forte, mancando da perna, desceu das Perdidas. Parecia o
comandante, porque dava ordens. Mais tarde, já livre dali, eu soube que era o
tenente João Bezerra. Junto com ele caminhavam três macacos, deviam ser
ordenanças. Alguns macacos subiram um pouco o riacho, disparando a espingarda
nos matos para espantar se tinha gente. O comandante foi direto para a barraca
do Capitão, como que determinado e sabendo. Eu vi quando ele cascavilhou os
troços e pegou o papo-de-ema e a mochila com cinco quilos de ouro que o Capitão
ia mandar para sua filha. Me arrependo ainda não ter pegado aquelas coisas,
também na hora nem me alembrei.
32 Os
macacos, quinem urubus, deram em riba dos cangaceiros caídos, atrás do saqueio
de dinheiro, ouros, jóias, outras coisas mais. Não tinham paciência de tirar os
anéis dos dedos, cortavam logo os dedos. Sentado numa pedra, o comandante deu a
ordem: — 'Cortem as cabeças dos cangaceiros!' Aí foi um alvoroço, todo o mundo
gritando: — 'Cortar as cabeças!... Cortar as cabeças!...' Não sei como não
morri vendo aquele horror! Parecia um bando de bicho do mato, de feras
selvagens, dando gargalhadas e chamando toda nação de nome feio. Levantavam as
cabeças dos mortos, segurando pelos cabelos, botavam o pescoço escanchado numa
pedra — ficava uma coisa feia: a boca escancarada, os olhos arregalados! — e
metiam o facão. Um macaco furando, furando, de pedacinho, com a ponta da faca
no redor do pescoço de um cabra até separar do corpo. Outro rolou o facão no
pescoço e, quando puxou a cabeça, saiu a guela de dentro do corpo. Foi uma mangação
danada! Nenhuma cabeça era cortada de uma só vez. Davam mais de um golpe.
33 Vi
uma coisa horrível, que nunca um cangaceiro fez e só bicho faz: os macacos
lamberem o sangue da folha do facão melado! A cabeça cortada era levantada pelo
cabelo e mostrada, todos dando risada de gosto, mangando e dizendo nomes feios.
Tinha cangaceiro meio vivo, mexendo os olhos e falando. Cortaram assim mesmo a
cabeça deles com vida! A sangreira era medonha! Tudo melado: macaco, facão,
pedra, chão, água, roupa, 'tudim'. Eu vi tudo, já era dia claro, de dia.
Naquele meio, veio a ordem do comandante para acabar depressa. Ele estava
sentado numa pedra, o pé amarrado, e muito zangado, acho que era de dor. Eu
tive dó quando um macaco levantou a cabeça de Maria Bonita, dependurada pelos
cabelos compridos. O outro macaco, que tinha o facão na mão, perguntou meio
espantado: — 'Inda tá viva, bandida? Cadê o dinheiro?' Ela respondeu bem
fraquinho: — 'Não tenho, não'. — 'Então, lá vai...' E cortou o pescoço dela com
duas 'facãozadas'. O corpo ficou batendo no chão como de galinha sangrada, e as
pernas se descobrindo. Aí eles arregaçaram a saia dela para espiar o resto e
começaram a bolir com as mãos, dizendo lérias.
34 Tive
tanta raiva que veio vontade de sair e avançar naqueles dois sujeitos safados,
desculpe a má palavra. Chegou a vez do Capitão. Um macaco conheceu e disse: —
'É o peste do cego!' Danou uma coronhada de fuzil na cabeça e foi avisar o
comandante. O outro ficou cortando o pescoço do Capitão em riba de uma pedra.
Quando acabou, a cabeça escorregou e rolou pela ladeira da pedra até o chão.
Ele pegou ela e levou para mostrar ao comandante, que ficou cercado de macaco
examinando e falando. Tudo acabado, botaram as cabeças em três sacos, as bocas
amarradas num pau. Sim, botaram, também, um corpo com cabeça dentro de uma rede
dependurada noutro pau. Tudo mode ser carregado, nos ombros de dois. Adespois
os macacos foram se lavar nas poças mais de riba, de água limpa. Começaram a ir
embora. O comandante numa cadeirinha feita dos braços de dois macacos. Levaram
todo o saque. Foram subindo, um atrás do outro, feito formiga, pelo caminho do
alto das Perdidas.
35 Fiquei ali
deitado o dia todo. A cabeça zoava todinha, o corpo doía, quinem tinha apanhado
uma pisa de cacete. Faltei coragem para sair dali. Eu via macaco pulando até
pelos galhos mais altos dos pés-de-pau. Não tinha fome, não. Mas a sede era de
matar, aperriando. Senti uma agonia doida. Mas, esperei, esperei... O silêncio
muito grande. Os passarinhos assustados não voltaram mais. Fechava os olhos e
enterrava a cara no chão com medo de ver as almas daqueles defuntos aparecerem
sem cabeça. Fiquei tão assombrado que sentia algumas vezes o gume do facão
passar no meu pescoço. Rezei tanto a Nossa Senhora do Desterro que cheguei a suar
de pingar. Tardinha, fui saindo com medo de assombração e de tudo. Caminhava de
quatro pés, não podia ficar de pé causo das pernas feito molambo e tremendo. Eu
queria ficar fora da vista daquele açougue de carne de cristão. Subindo o
riacho cheguei no dependo do alto, os joelhos esfolados. Me aprumei, fui
andando, assim cambaleando, areado, até poder sair correndo, ligeiro ou
devagar, a noite inteirinha, até chegar na casa de meus pais. Tava mais morto
do que vivo.
36 Passei
aquele dia deitado tomando tudo o que era de meizinha que minha mãe preparava e
me dava. Comida de panela comi bem pouquinho. De noite, já no outro dia, meu
pai me levou para casa de um tio meu, viúvo, que morava sozinho, lugar mais
seguro, um esquisito. Estou lá este tempo todim, fazendo planta, dando limpa,
xaxando terra nos pés, colhendo legume e capucho de algodão. Também no cuido
das criações. Sem sair pra nenhum lugar. Somente agora saí praqui causo minha
mãe mandou pedir perdão a Deus. Adespois desta conversa eu quero que seu
vigário escute meus pecados na confissão e me comungue na missa".
37 O
fim Satisfazendo a curiosidade do leitor: Esse moço, que escapara da morte para
contar a história, logo depois, feito embarcadiço de um vapor do rio São Francisco,
rumou para o Sul, sem documentos, de nome novamente trocado, para começar nova
vida. E desapareceu... No local onde Lampião caiu morto, o capitão João Bezerra
fez erguer uma grande cruz latina, de ferro, com três metros de tamanho, hastes
binadas, cravada em peanha natural, de pedra. Seu autor teve uma concepção
original, que tornou a cruz única no gênero.
38 Mandou
colocar duas estreitas barras de ferro unindo as extremidades de cada braço ao
topo da haste vertical, formando assim dois triângulos- retângulos, em cujas
hipotenusas foram levantadas dez pequenas cruzes, também de ferro, com o nome
dos companheiros de Lampião mortos com ele, e distribuídas, a começar do topo,
na seguinte ordem: do lado esquerdo — Maria Bonita, Elétrico, Mergulhão,
Desconhecido (depois se descobriu tratar-se de Mangueira), Diferente (este
fugiu; o morto era Moeda); do lado direito — Luís Pedro, Quinta-Feira,
Cajarana, Caixa- de-Fósforo, Enedina. Particularidades interessantes e
coincidentes: — a cruz de Maria Bonita fica à esquerda — o lado do coração! — a
de Luís Pedro, à direita — o lado da confiança! A inscrição reza assim: —
"Aqui jaz o Rei do Cangaço, Capitão Lampião, com dez companheiros. Combate
a 28 de julho de 1938. Lembrança do capitão João Bezerra. Colocação da cruz em
30 de outubro de 1961". A essa inscrição poderia aquele oficial acrescentar
as palavras suas, ditadas, anos mais tarde, pela análise sincera e pelo
critério sereno e honesto de seu espírito amadurecido a respeito do Rei do
Cangaço:
39 Anjico
Angico A Cruz de Lampião
40 —
"Se ele (Lampião) fosse vivo hoje, eu não permitiria que ninguém
encostasse o dedo nele. Hoje eu não acho que ele era bandido". Tenente
João Bezerra
41 "Ainda
se ouvem os gritos do seu feroz combater, na toada das rendeiras, na voz do
cego das feiras, o peito quente do povo espera o seu renascer"
(Cancioneiro de Lampião). Lampião morreu... Ficou ali sua cruz de ferro. Cruz
simbólica e significativa de uma Época no Tempo... de um Rei no Reinado do
Sertão! Cruz eternamente solitária de um Homem — mito e legenda — força
telúrica e épica —surgido das estranhas profecias do Conselheiro e em cujo
peito de ferro foi fincada a Fé e confiado um Destino!...
42 Lampião
e Maria Bonita Lá ia ela, ao lado do Capitão, caminhando ou a galope, sempre
bela, coleante, amorosa e redondinha. Orgulhosa como um pavão a ombrear com o
macho temível. Sorrindo sempre, mesmo na hora de praticar amor. E sempre
seguida de perto por um cachorro negro e comprido que o Capitão lhe dera de
presente, o Zé Rufinho, nome com que a bonita Maria batizara o animal, em debochada
homenagem ao sanguinário e destemido comandante de polícia José Rufinho, que
estava constantemente nos calcanhares dos dois amantes famígeros. Lampião,
Maria Bonita e Zé Rufinho
43 Depois
do bando de Lampião assassinado pela volante alagoana do Tenente João Bezerra a
28 de julho de 1938, expostos na escaldaria na Prefeitura de Piranhas, Alagoas,
em composição atribuída a Lisboa.
44 Corisco
- Herdeiro e vingador de Lampião...Corisco levou dois dedos à boca, tirou um
som curto; ao ouvi-lo, os cabras invadiram a varanda. Foi um terremoto. No meio
do barulho que faziam esses homens sedentos de vingança, ouviu-se a voz de
Corisco: - Matem todos! Então, foi um verdadeiro inferno: uma calamidade. As
facas reluziram à luz dos lampiões. Só escapou o delator, porque tinha fugido
para Alagoas. A varanda estava juncada de corpos e o sangue continuava a
correr. Depois, os cabras partiram...
45 POESIA
Menina vou te contar a história de um cangaceiro, bicho bom do pé ligeiro,
lobisomem do sertão. Comia moça donzela, reparava a injustiça, estrangulava
macaco por crime de traição, entrava nos povoados e deixava em petição de
miséria o prepotente vergado na punição.
46 Desocupado,
erradio, vagueou como um papão, por muitos anos a fio não buscou a salvação,
tinha grande protetor, o padre Cícero Romão, no lugar onde chegava era vigário
e juiz, amancebado casava e livrava o infeliz que nas grades da cadeia vivia
curtindo peia, delegado de polícia escapava por um triz.
47 Nos
doze pares de França foi buscar inspiração, seu chapéu era igualzinho ao do rei
Napoleão, o imperador Carlos Magno houvera de ter paixão, valente como
Olivério, brigava como Roldão, dos tempos mais recuados, só Osório e Cipião
podiam ser comparados ao guerreiro Lampião.
48 Nestes
autos vou narrar a vida de Lampião, quem tiver oiças, escute e faça do coração
a via do entendimento, pois nada vale a razão, sangue e terra se misturam em
perpétua comunhão, na linguagem do mistério dou a minha tradução, o demônio
sobrevive no descendente de Adão, quem de si não o afugenta apodrece na prisão,
o homem não nasce bom, já nasce na expiação, se o anjo prevalecesse já teria
morto o Cão. Nertan Macêdo
49 Uma
Revista feita com o amor de Maria Bonita e a coragem de Lampião
Carregar ppt "Capítulo VI A morte de
Lampião Aquêle ôlho terrível que nos fitava no fundo da história do
sertão..."
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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