Por Capitão Alfredo Bonessi
Alto, magro, moreno escuro, quase pardo, esguio, meio corcunda, ágil, saudável,
resistente a fadigas, manco do pé direito por causa de bala - segundo quem lhe
conheceu - por causa de calos no pé segundo declarações dele mesmo, em estado
espiritual, a um programa de televisão, com belida no olho direito, um leucoma,
assim era o corpo de Virgulino Ferreira, vulgo Lampião.
De personalidade alegre, disposto, temperamento inconstante, sujeito a crises
de fúria e descontrole, místico, religioso, rezador, intuição apurada,
perspicaz, agudeza de raciocínio, inteligente, líder nato, exímio atirador de
armas curtas e longas, fazendeiro, domador de animais de montaria, vaqueiro
campeão, amante de bebidas finas, cigarros, charutos e mulheres, excelente
trabalhador em couro e tecidos, narcisista, jogador de baralho sem sorte,
impiedoso, cruel, vingativo, justiceiro - falso moralista, abusou sexualmente
de algumas mulheres, embora, hoje, não sabemos se eram esposas ou filhas de
inimigos. – Mesmo assim são fatos lamentáveis e inaceitáveis para qualquer
época de uma geração.
Desconfiado, prudente, calculista, infiel mas respeitador das opiniões da
companheira, maleável até certo ponto, principalmente em algumas decisões a
ponto de alterar as ordens dadas por interferências dela, respeitado, temido,
considerado, perigoso, astuto, inquisidor, julgador, musico, dançarino,
corajoso, amigo, leal, acreditava nas pessoas, perfeccionista , gostava de tudo
o que era bom, rico, comerciante, artífice, laborioso, habilidoso e
estrategista.
Lampião foi um homem notável para o seu século. Não existiu até o presente momento ninguém mais do que ele, igual a ele, em mesmas circunstâncias, fazer o que ele fez em um ambiente hostil, carente de meios e desprovido de tudo, por tanto tempo assim – mais de vinte anos - acossado por centenas de volantes policiais.
Não sabemos até hoje como conseguiu gravar o seu nome e o de sua mulher no interior das alianças que ambos portavam e que simbolizavam a paixão que um nutria pelo outro. Gostava de tudo que brilhava, que reluzia. Quem o avistasse pela primeira vez ficava impressionado com aquele homem impecavelmente trajado de azul, ou brim caqui, apetrechos ricamente ornamentados de variadas cores e matizes, armas luzidias nas mãos prontas para o uso, tez da cor de cuia, olhar firme, voz rouca, sons profundos que calavam fundo na mente de quem o ouvia – de repente a pessoa, em seu intimo, sentia um arrepio, um frio, um medo, um temor – sentia a impressão que estava correndo um grande perigo, e aguardava, apavorada, a qualquer momento o bote daquela fera perigosa, de punhal em riste, e com a ponta do aço duro cutucar a veia jugular na tabua do pescoço, sangrando a vítima em questão de segundos.
O pavor que os nordestinos sentiram quando estiveram frente a frente com Lampião, sentiram também os homens que outrora conviveram com pessoas diferentes e superdotadas, como por exemplo, quem esteve nas presenças de Alexandre, O Grande, Julio César, Nero e Napoleão Bonaparte. – personagens da História, grandes personalidades em suas diferentes épocas, alguns líderes excepcionais, guerreiros, vencedores, que sucumbiram pela vontade do destino, dono absoluto da vida das pessoas importantes. Quem os visse, a princípio, sentiam-se admiradas diante de tanta beleza, depois de contemplá-los por alguns instantes sentiam um respeito profundo pelo que viram, depois eram possuídas por um temor inexplicável que lhe arrebatavam a alma e que lhes causavam calafrios, palidez nas face, suor frio e tremores nas pernas.
Não se pode desejar que lampião nasça em outro lugar, em outro país, em classes
mais abastadas. Lampião nasceu e se criou no lugar exato em que todo o homem valente
deseja nascer e ser criado - uma terra de homens corajosos, valorosos, que não
tem medo de nada e de ninguém. Homens acostumados a vida dura, difícil, onde só
o destemido, o persistente, o audacioso, os corajosos sobrevivem, tiram raças e
prosperam em cima do solo duro, pedregoso, domando o gado hostil - animais
bravios - em meios a serpentes venenosas, como a cascavel e rodeado de mata
espinhenta por todos os lados.
Quem visita o lugar onde Lampião nasceu sente a alma envolta por um romantismo
inexplicável, o ar circundante é adocicado pelo aroma das flores silvestres.
Ainda pode se escutar o gorjeio livre da passarada ao amanhecer e ao
entardecer; pode-se sentir o cheiro natural que brota da terra estrumada;
pode-se ouvir o guizo da cobra oculta; pode-se escutar ao longe o mugido do
gado na invernada; pode-se imaginar o fogo aceso, panelas ferventes, chiando
nas trempes, o prato de bolinhos feitos pela Dona Jacosa, sua avó, o café
fumegando na caneca, e as suas mãos ágeis enfeitando o couro dos arreios, o seu
semblante concentrado mas feliz pela alegria que sentia de viver e de
trabalhar, o prazer de tudo e por tudo, o gosto pelo que é bom.
Toda essa vida boa, doce, tranquila, prazerosa, o destino ingrato retirou dos caminhos de Lampião, menos a fé em Deus e o amor puro que nutria pelos seus familiares. Mesmo nas horas mais difíceis de sua vida atribulada a paixão pela Virgem Santíssima nunca se arrefeceu de seus pensamentos ardorosos, forjados por uma fé inquebrantável – sentia um amor infinito e incompreensível pela Santa, a ponto de sempre rezar em sua homenagem, ao deitar, ao levantar, ao meio dia e as seis horas da tarde.
Lampião a frente de seus homens mantinha uma rede de informantes pagos a peso de ouro. Aliciava policiais e pessoas influentes, e quando não conseguia demover o perseguidor por bons modos, difamava-os, inventava historias cômicas sobre eles, dava-lhes apelidos depreciativos, contava piadas que fazia brotar risos na turma acampada aos redores das fogueiras, sobre esse e aquele oficial. Era temerário, mas não poderia ter negligenciado a capacidade combativa de Bezerra - o oficial que o matou- segundo Lampião, dito por ele mesmo, não tinha medo de boi brabo, quanto mais de bezerra..., o descuido, esse erro de avaliação foi-lhe fatal e custou-lhe a cabeça naquela manhã de 28 de julho de 38.
Criou para si e para seu bando sinais, códigos e gírias que
significavam algo entre eles, que conheciam a chave para decodificação, como
por exemplo o L formado pelo indicador e o polegar da mão direita que devia ser
mostrado quando se aproximavam das sentinelas do grupo. A três pancadas nos
troncos das arvores - mas não eram pancadas comuns, elas tinham intensidade,
ritmo e freqüência, que só os do bando sabiam executa-las.
A manutenção dos esconderijos, os depósitos escondidos nos interiores dos
troncos das arvores, de dinheiro, munição e armamento; a ocultação do cadáver
do seus comandados, o sumiço dos rastros, a camuflagem, a dissimulação, a finda,
o drible, a manobra audaciosa, o descarte dos dejetos dos acampamentos, a busca
pela água e pelos alimentos, - o lampejo na mente iluminada pela escolha da
decisão mais acertada, na hora certa e diante de grande perigo - fizeram o
bando sobreviver por longos anos, diante de volumoso número de perseguidores,
graças ao tirocínio de seu comandante, de sua visão combativa, de seu
planejamento bélico, do seu sentido de direção, de seus objetivos previamente
ajustados e na maioria das vezes bem sucedidos, e por esse fato granjeava a
admiração e o respeito dos seus seguidores, a ponto de sempre confiarem nele e
o considerarem invencível. Seu bando nunca andava a ermo, sem um roteiro
estabelecido, se um objetivo, sem uma missão a cumprir. Seus deslocamentos sempre
tiveram início, meio e fim.
Lampião morreu no tempo certo e na hora certa. Morreu no apogeu da vida e da saúde. Morreu em combate. Após o mortífero impacto da bala que lhe pós por terra, enquanto pode, enquanto tinha uma pouco de energia, tentou ficar de pé, não conseguiu, se contorceu até que o tiro final esgotou todas as possibilidades de vida. Um espírito muito forte retornava a sua morada divina.
Lampião pode ter sido o que seja, mas um dia voltará para cumprir a sua missão terrena em uma nova chance dada pelo criador. Esperamos que tenha mais sorte desta vez. Analisando a vida de grandes malfeitores podemos dizer que Lampião não teve as mesmas chances e as oportunidades de fazer o bem que tiveram Reis, Rainhas, Religiosos e Políticos da Nova Era. – pelo contrário – foram até muito pior do que ele. As centenas de pessoas que caíram pelo aço de seu punhal ou pelas balas de suas armas nem de longe se comparam aos milhões de mortes causadas pela inquisição religiosa e nos porões das masmorras ideológicas. Talvez seja por isso que Lampião mereça uma nova chance nesse mundo de pecado.
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