Autor Nertan Macedo
“Chegamos ali, fomos recebidos em festas. Deixamos a roupa de cangaço e nos fardamos. Lampião recebeu a patente de capitão, Antonio Ferreira primeiro tenente, Sabino segundo, e Luiz Pedro primeiro-sargento e eu segundo. De volta da excursão contra Prestes, onde foi até a Bahia, Lampião, sentindo-se logrado, avisou: “Quem quiser debandar, pode ir. Eu volto ao cangaço”. Saímos do Juazeiro com vinte e dois homens e ao chegarmos a Pernambuco tínhamos mais de cem”
(DO DEPOIMENTO DO GATO BRAVO)
“Correio do Ceará, 9 de agosto de 1948)
NÃO É VERDADE que os sinos das igrejas do Juazeiro do Padre Cícero hajam repicado saudando a entrada de Virgulino Ferreira.
Na porta da cidade mística o bando estacou, permanecendo numa casinha de beira de estrada, nas imediações da fazenda do doutor Floro.
À noite, por volta das dez horas, Virgulino deslocou-se com sua gente para a entrada da rua, indo alojar-se no sobradinho do poeta João Mendes de Oliveira, rodeado da admiração e do pasmo dos “casacas” e povo.
Foi na casa do poeta que ele deu uma entrevista famosa ao doutor Otacílio Macedo, médico e jornalista de Crato.
Perguntou-lhe o doutor:
“Por que não larga essa vida, Capitão, o senhor que já tem tanto dinheiro? Por que não vai embora para Goiás ou Mato Grosso, deixando de vez essa existência perigosa?”
“Doutor, o senhor estando bem numa vida, o senhor larga ela? Assim sou eu!” – replicou Virgulino, sentado a uma mesinha, bebendo cerveja quente, rodeado pelo jornalista, Antonio e Sabino.
Na rua, populares chamavam por Lampião. O doutor testemunhou as quatro ou cinco vezes em que ele se levantou, no meio da conversa, encheu o chapéu de couro com moedas e, da janela da casa, jogou-as de esmola ao povo aglomerado na frente.
Em sua entrada de Lampião na Cidade do Padre Cícero, João Martins de Athayde conta essa entrevista:
“Num tamborete sentado
Lampião só respondia
As perguntas que o repórter
Com acento lhe fazia
Sempre de arma na mão
Prestando muita atenção
Ao movimento que havia.
Assim naquela atitude
Rosto firme, olhar insano
Quem o visse não dizia
Ser um ente desumano
Prestava atenção a tudo
Com um caráter sisudo
Parecia um soberano
O repórter perguntou
A Lampião sua idade
Tenho vinte e sete anos
Com toda serenidade
Sinto-me bastante forte
Não tenho medo da morte
Num fujo da autoridade”
O poeta narra depois, a visita que uma velhinha fez a Lampião, no sobradinho de João Mendes. Foi das mais generosas a recompensa de Virgulino ao gesto da anciã:
Disse a velha aqui eu trago
Remédio pra sua dor
Guarde consigo esta imagem
E tenho fé no criador,
Pelo poder do Messias
Inda brigando dez dias
Bala não fere o senhor.
Recebeu ele a imagem
Da forma que lhe convinha
Acreditando o milagre
Que a velha disse que tinha
Pegou um dos seus anéis
E mais um conto de réis
Botou na mão da velhinha.”
Quem não quis se conformar com a presença de Lampião ao Juazeiro foi o sargento José Antonio do Nascimento, do destacamento local. Primeiro, pretendeu evitar a entrada do grupo na cidade. O padre Cícero opor-se ao policial. Virgulino viera na boa fé dos tratados, atendendo a um chamado do doutor Floro, seu amigo, que retornara doente ao Rio de Janeiro – e qualquer ato contra o cangaceiro seria de traição e deslealdade, ferindo, além do mais, aquilo que o reverendo prezava: a hospitalidade sertaneja.
João Martins de Athayde dá-nos notícia dessa reação do padre:
“Todos olham pra ele
Com muito ódio e rancor
Eu sou o chefe da igreja
Dei prova de bom pastor
Não consinto violência
Tenham santa paciência
Não posso ser traidor”.
Lampião, informado dos planos do sargento, a este escreveu uma carta muito difundida; José Antonio comandava um destacamento reduzido, mas acreditava poder arregimentar uns cem homens no Juazeiro para prender Virgulino. Com esse plano não concordou também o então delegado de polícia da cidade, Manuel Timóteo, cujo suplemente não pôde assumir o lugar por ter “adoecido” subitamente.
Disfarçou-se o sargento José Antonio e foi visitar Lampião, que o reconheceu e até comentou:
- Não é esse o tal sargento que queria me prender?
Mestre Francisco Vicente da Silva Cavalcante, barbeiro no Juazeiro, passou quase todo um dia cortando o cabelo dos homens de Lampião. Este foi o primeiro a depilar-se. Depois, disse a mestre Chico:
- Mestre, não tenho dinheiro no momento. Posso pagar Depois?
Contou, anos mais tarde, a um jornal carioca, o fígaro sertanejo:
“O Capitão Virgulino Ferreira Lampião não penetrou na cidade sem aviso prévio ao meu padrinho. Só depois que meu padrinho providenciou aposentos para todos eles é que Lampião chegou, numa quinta-feira, permanecendo até domingo. Cangaceiros andaram livremente na cidade, fazendo compras, mas desarmados por ordem do chefe. Foram três dias de festa, sem que ocorresse qualquer incidente”.
Dias depois mestre Chico recebia o dinheiro dos cortes, dez mil réis, inclusive gorjeta, que o Capitão Virgulino lhe enviara através do mano João Ferreira.
Pedro Maia e Lauro Cabral, moradores no Crato e na Barbalha, foram especialmente a Juazeiro bater umas fotografias do Capitão.
Certa madrugada o padre Cícero chegou ao sobradinho de João Mendes. Ajoelhadas contritos, Lampião e o bando receberam a bênção e os conselhos do taumaturgo. Este, ao retirar-se, bateu no ombro de Virgulino, dizendo:
“Ô menino! Quando voltar da campanha há de deixar essa vida de desordens!”
O padre aludia à campanha contra a Coluna Prestes. Vigulino não respondeu sim nem não ao patriarca. Depois confidenciou a várias pessoas:
“Só posso largar o cangaço daqui há três anos!”
HAVIA ENTÃO no Juazeiro um funcionário público federal, o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa, que ali exercia o cargo de Inspetor Agrícola do Ministério da Agricultura. Certa noite foi convocado à presença do Padre Cícero.
Em casa foram busca-lo, a mando do sacerdote, Antonio Ferreira e Sabino Gomes.
Ao chegar à presença do Padre Cícero, ouviu dele o seguinte:
“Uchoa, você vai preparar três patentes: uma de capitão para Lampião, de primeiro-tenente para Antonio Ferreira e outra de segundo-tenente para Sabino. Você é um funcionário federal e tem credenciais para expedir os documentos...”
Pedro Uchoa ficou perplexo. Anos mais tarde ele confessaria a Leonardo Mota que, em tal emergência, assinaria atém mesmo “a demissão do presidente Bernardes, quanto mais a patente de Lampião”
Quis objetar, todavia, mas Antonio Ferreira interveio, pondo-lhe a mão no ombro:
“Que nada, seu doutor, meu padrinho mandou o senhor escrever o documento e ele sabe muito bem o que ele está dizendo: fala logo as patentes e deixe o resto com a gente e com o meu padrinho...”
Passou então o padre ao funcionário uma folha de papel e ele mesmo ditou a promoção:
Em nome do governo dos Estados Unidos do Brasil, nomeio ao posto de Capitão e cidadão Virgulino Ferreira da Silva, a primeiro-tenente Antonio Ferreira da Silva e, a segundo-tenente, Sabino Gomes de Melo, que deverão entrar no exército de suas funções logo que deste documento se apossarem. Publique-se e cumpra-se. Dado e passado no Quartel-General das Forças Legais de Juazeiro” etc.
Concluído o decreto, o padre disse ao agrônomo:
“Agora ASSINE” O Floro que e deputado federal, não está aqui e eu não exerço nenhum cargo. Você, porém como inspetor agrícola, é uma autoridade federal...”
Uchoa assinou. De volta para casa, ainda em companhia dos tenentes Antonio Ferreira e Sabino, o agrônomo tomou coragem e ponderou:
Eu acho que aquelas patentes não valem, pois eu sou um simples funcionário subalterno...
Antonio Ferreira, ríspido, replicou:
- Não tem mais o que discutir. Meu padrinho mandou fazer e o que ele manda fazer, vale!
FARDADO E MUNICIADO com fuzis do Exército, o bando acrescido de novos soldados, lampião caiu, outra vez, na caatinga.
Informado de que os oficiais pernambucanos não reconheceriam a sua patente, deixou a Coluna Prestes movimentar-se livremente, preferindo os caminhos do Pajeú. De volta do Juazeiro, evitou Macapá, onde já se encontrava um destacamento, pronto para recebe-lo a bala.
Rumou para Jardim, onde chegou à noite. O bando marchara vanguardeado por Antonio Ferreira que, na entrada da cidade, havia estabelecido um complexo serviço de segurança para a mano Capitão.
Em Jardim, Lampião dirigiu-se à casa do prefeito José Caminha de Anchieta Gondim, o coronel Dudé, assegurando-lhe, pessoalmente, que os seus homens estavam sobre controle da mais severa disciplina.
Os patriotas de Virgulino puderam, assim, acantonar no edifício da cadeia pública e no prédio onde funcionava o colégio local, livres e desembaraçados.
Três dias ali ficaram.
O corneteiro do bando, Jurema, entendeu, todavia, de pular por cima das ordens de Lampião. Primeiro deu um “giro” pela ponta de rua, onde se aboletava o meretrício e onde demorou em fornicações e bebedeiras com mulheres-damas do Jardim. De volta ao quartel andou soltando a língua na rua, dirigindo gracejos a uma senhora.
Sabedor das aventuras galantes do corneteiro, o Capitão mandou dar-lhe uma surra de relho de couro cru, no meio da rua, por dois dos seus soldados. Jurema não saiu vivo de tamanho corretivo, morrendo, dias depois, em abandono, numa calçada.
Era a disciplina prometida ao coronel Dudé, na hora da chegada do batalhão.
Virgulino requisitou do comércio local todo o estoque de vinho Constantino para os seus patriotas, retirando-se, em seguida, para Engenho d’Água, a dois quilômetros de Jardim, face a um boato corrente de que a Coluna Prestes andava pelas imediações.
Dias depois, saía do Ceará.
Mestre Zuza, ferreiro de Jardim, a pedido do Capitão, cortara o cano do fuzil que ele trazia do Juazeiro. Da calçada da cadeia pública, Virgulino Ferreira espiou o céu em torno. Divisou um urubu pousado no cume da torre da matriz, a mais de trezentos metros donde ele se achava, examinando a arma que mestre Zuza degolava.
Aí Lampião mirou a arma e fez fogo. O urubu despencou da torre e estatelou-se morto, no patamar da igreja.
Era assim a pontaria do Capitão.
UM ANO DEPOIS Lampião batia às portas de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Fonte: Capitão Virgulino Ferreira Lampião
Nertan Macêdo
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