Por: Rangel Alves da Costa
A INFÂNCIA DA VELHICE
Se corretamente afirmam que a velhice vai tornando o idoso em verdadeira criança, também seria correto asseverar que velhice também tem a sua infância. Quer dizer, para a velhice alcançar o apogeu da inocência terá que passar pela infância novamente. Contudo, muitas vezes dolorosamente.
A infância de uma criança é caracterizada pelo início da descoberta do mundo, pelas brincadeiras, pelo dom da inocência que ainda não foi corrompida pelo cotidiano que a cerca, pelo apego às pequenas porém significativas coisas, pelo sonhar com uma realidade fantasiosa e aventuresca, pela doçura que lhe é tão peculiar. Mas como será a infância da velhice?
Ele era uma criança sapeca, brincalhona, inventando de tudo para ser feliz. Brincou de carrinho, chorou querendo mais bico, lacrimejou com a morte do passarinho, toda moeda que ganhava corria pra comprar um doce. Era buchudinho o danado, e a mãe gritava que ou ele parava de viver adocicado ou o bicho do açúcar ia sair pela boca.
Foi crescendo ainda alegre, brincalhão, cheio de vida e disposição. Corria atrás da bola no campinho e depois avistou a menina mais linda do mundo. Não sabia o que era paixão, mas ficou apaixonado, jogava beijo no vento, deixava uma flor na janela. Mas depois disso, já homem feito, havia perdido aquele sorriso bonito, aquele entusiasmo que sempre demonstrava ter.
A idade adulta parece ter apagado de vez toda a construção festiva da vida. Rotinas, problemas pra resolver, buscas e desilusões, tudo ficando difícil demais. Chegou à velhice entristecido e desesperançado, angustiado demais e com poucas razões para agradecer por estar continuando com vida, envelhecido enquanto tantos tiveram de partir mais cedo.
Ser velho também parecia um empecilho em tudo. Nesse momento de tudo juntado na vida, o construído ou não, resta viver esses dias como se a morte não fosse a próxima porta aberta que tivesse de entrar. Mas dificuldades demais, desapontamentos acrescidos do abandono a que estava relegado, da pouca valia que tinha para os filhos e netos, da solidão dos dias e das noites. Além disso, as doenças próprias da idade, o remédio do contentamento que faltava, a escuridão em plena luz do dia.
Não obstante tais sofrimentos, com o peso dos anos as pernas começaram a fraquejar, quase não conseguia mais andar sozinho; a visão cada vez mais turva, os olhos lacrimejando por outros motivos. Sua vida agora era sentar numa cadeira de balanço dia e noite, olhando o tempo passar pela janela e imaginando como poderia ter chegado àquela situação. Viúvo, sozinho, apenas com um parente ou outro vindo ali lhe visitar de vez em quando.
Um dia não conseguiu mais caminhar em direção à cadeira; a janela estava fechada e assim continuou. Quando uma boa vizinha apareceu, achando estranha aquela janela fechada, já não suportava mais levantar da cama. Dali em diante, se precisasse de qualquer coisa teria de ser através dos outros. Deitado, a cama era o seu berço, qualquer um sua mãe, já velho e doente, e agora novamente criança.
Novamente criança, de novo na infância mais inocente porque nem conseguia mais sequer discernir o que se passava ao redor, porque estava naquela situação, porque precisava da ajuda dos outros para comer, beber, se banhar, vestir, para fazer tudo que uma criança envelhecida ou um velho acriançado tinha de fazer. O banho era dado com o mesmo cuidado que se banha uma criança; as roupas de baixo se transformaram em fraldas. E imagine-se um a pessoa naquela idade tendo de usar fraldas novamente.
A comida, uma papinha ou mingau, era levada à boca por outras mãos; a água derramada cuidadosamente para não molhar o resto do corpo; a cantiga de ninar agora era uma oração, uma prece, um pedido ao Senhor para que aquela velha criança retomasse forças para continuar vivendo. Não falava mais nada, apenas balbuciava coisas desconexas, coisas que só os infantes sabem fazer quando estão começando a aprender a falar.
Mas o que ele dizia? Talvez nada mesmo; ou talvez tudo. Mas certamente querendo ir para os braços da mãe.
Poeta e cronista
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