Por: Wescley Rodrigues
Wescley Rodrigues
Acaba de ser lançado, na capital de Sergipe, o livro “Lampião, o mata sete”, de autoria do ex juiz de direito Pedro de Morais. Em linhas gerais, a obra, segundo relato da mídia, versa sobre um possível triângulo amoroso entre Lampião, Maria Bonita e Luiz Pedro. Nas pesquisas do autor ele chegou a conclusão de que Lampião tinha sido atingido por uma bala no seu saco escrotal que fez com que este ficasse impotente.
Mas o interessante na obra não é esse ponto, mas sim o que diz respeito a afirmativa que seria Lampião homossexual, sendo que todos os casos que ele teve com mulheres ao longo de sua vida era apenas para ludibriar o meio social em que ele estava. E Maria Bonita? É apresentada como uma mulher perversa, intrigueira, que apenas era uma espécie de “cobaia” para maquiar a homossexualidade do dito “Rei do Cangaço”.
Há ainda outra peculiaridade na obra, essa diz respeito a Luiz Pedro, homem de confiança de Lampião, que na verdade não passava do amante do líder cangaceiro, sendo o ativo nessa relação, praticando atos sexuais tanto com Lampião como Maria Bonita. Frente a isso, me vêm a mente algumas questões interessantes que como historiador e estudioso do cangaço não poderia deixar passar despercebido.
Não canso de dizer que na história do cangaço e nas pesquisas desenvolvidas, muitos escritores esquecem de que qualquer trabalho histórico precisa de um método, método que possa dá caráter de cientificidade a produção e ajude a elucidar as lacunas dos fatos do passado. Sem método é muito difícil se construir uma história que prime pela verdade ou pelo menos pela verossimilhança. O método não é algo somente de acadêmicos ou daqueles que são portadores de um diploma universitário e fazem da história um ofício, mas o método é uma espécie de rota que faz com que não nos percamos no meio do arsenal de informações que vamos adquirindo ao longo das pesquisas.
Outro elemento preponderante são os documentos, eles são a alma das pesquisas históricas, sejam documentos oficiais, relatos orais, fotografias, mapas, gravuras, etc. Eles possibilitam-nos falar não de forma aleatória, mas nos dão um respaldo, nos servem de pilar para fazermos afirmativas a partir do nosso lugar social de escritores. No entanto, apesar de serem importantes para as pesquisas, não podemos nos deixar levar por eles, pois nem sempre eles são detentores de verdades. Os documentos, como nos ensina o método histórico, devem ser questionados, problematizados, debatidos. Devemos conversar com esses documentos e também entender o lugar de sua produção e construção. Assim, nem todo documento só por ser histórico contem a verdade ou uma verossimilhança.
Pois bem, depois dessa explanação reflitamos um pouco a obra referendada acima. O autor afirma que para a elaboração da mesma ficou no campo das conjecturas, não tendo como ter acesso a fontes primárias, o que já coloca o trabalho em um patamar extremamente problemático. Para a história é preciso de provas, não só fazer ligações, acreditar em hipóteses. Ou você parte da hipótese a prova documental, ou é melhor se calar, pois isso já foge completamente do que se entende hoje como história. Tal afirmativa da homossexualidade de Lampião e do seu poliamor é problemática, pois não se tem documentos palpáveis em que se possa afirmar tal ideia. Qualquer trabalho que fale do passado tem que entender a temporalidade do período estudado, e até onde me consta - não estou afirmando que não tinha -, a homossexualidade no sertão nordestino era um tabu nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Ainda não tínhamos passado pela revolução sexual, os homossexuais eram tratados como doentes que precisavam de tratamento, e nesses usavam-se métodos de “cura” extremamente desumanos, como por exemplo eram trancados em manicômios, passavam por tratamentos de choque, eram agredidos por serem tratados como sujeitos sem moral que precisavam ter a sua conduta reabilitada a partir da agressividade.
O fato de Lampião ter voz afeminada, traços e atitudes mais “finas” para aquele meio “áspero” em que viviam – não estou afirmando um “determinismo geográfico” – não vêm a provar que ele era homossexual, pois é uma evidência muito pobre para se lapidar tal afirmativa. O problema em questão não é se ele era ou não era gay, mas a problemática está em não termos as provas documentais que prove isso, o que impossibilitaria de fazermos tal afirmação, até porque sua sexualidade não mudaria em nada o papel que ele desempenhou na história, até porque o que ele fez ou deixou de fazer no meio da caatinga com Luiz Pedro e Maria Bonita, só dizia respeito a eles.
Fora essa afirmativa que é comum na literatura sobre o cangaço de que Lampião era mais delicado nos traços e político no falar e se relacionar, não há nenhuma prova documental até o presente momento que comprove a sua impotência e homossexualidade, até porque em uma realidade social extremamente fálica, onde o culto a masculinidade se ligava ao genital, como tão bem trabalho o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no mínimo era vergonhoso para o sujeito impotente sair espalhando a sua incapacidade de “expelir sementes” e ter ereção.
Concordo com o autor Pedro de Morais quando ele afirma ter por parte dos estudiosos do cangaço uma supervalorização da figura dos cangaceiros e do próprio Lampião que era bandido. Mas temos que entender que essa imagem também é uma construção histórica, daí teríamos como função entender porque de bandido ele passou a ser exaltado, quais os interesses que estariam nivelados em tal mutação representacional. O fato dele ser “bandido” não desqualifica a sua história, pois tanto os bandidos da caatinga, quanto os das favelas, o do congresso nacional, como os generais do exército ou os líderes religiosos católicos, protestantes, judeus ou mulçumanos, são seres históricos e precisam ser entendidos e historiados dentro de sua realidade. Não podemos marginalizar a imagem dos cangaceiros só por eles serem bandidos, mas temos que ter cuidado com essa supervalorização, que devem ser entendidas pelos estudiosos.
Mais do que nunca clamo aos estudiosos do cangaço que respeitem o passado e a história, respeitem os documentos, questionem as verdades, “nem tudo que parece, é”, como diz o ditado popular. Fazer história é lidar com vidas, vidas que deixam memórias que precisam ser respeitadas. É preciso ter um respeito para com o passado, como também para com os vivos do presente que merecem ter pelo menos uma aproximação do que é a verdade.
Prof. Wescley Rodrigues
Brasília – DF
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