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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A CRIANÇA MORTA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

Em texto anterior teci algumas considerações sobre a força expressiva contida na pintura A Menina Doente, de Edvard Munch, ressaltando a utilização de cores sombrias, em certos momentos quase enegrecidas, para tratar sobre a dor e o sofrimento de uma mãe ao lado de sua filha gravemente enferma.
Não por sequência ou busca de aprimoramento do antes analisado, mas hoje me volto para uma situação muito parecida com a descrita por Munch, porém agora sob outras vertentes expressivas e com uma motivação artística ainda mais forte, pois cuidarei do que me representa o quadro Criança Morta, de autoria de Portinari.
Criança Morta é um óleo sobre tela de 1944, da Série Retirantes, do paulista de Brodowski Cândido Portinari. Talvez não se faça necessário resumir o que continua representando a obra desse genial pintor na arte plástica brasileira e mundial. Por mais que a maioria do povo tupiniquim insista em desconhecer ou desvalorizar a arte, a cultura e a tradição, dificilmente alguém diria não conhecer ao menos alguma pintura portinariana.
Contudo, pessoas existem que jamais ouviram falar no pintor e, no entanto, ainda hoje representam os modelos vivos que um dia foram retratados. A Série Retirantes não pode ser tida apenas como uma contextualização artística, mas sim como um cenário onde se pode avistar pessoas tão conhecidas de todos, paisagens que ainda hoje continuam as mesmas, gestos e feições que infelizmente ainda não mudaram. Como o próprio artista afirmou: “Os retirantes vêm vindo com troxas e embrulhos. Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos. Doloridos como fagulhas de carvão aceso”.
E isto porque a Série Retirantes é uma fotografia dolorosamente fria, contundente, realística do Nordeste brasileiro, dos sertanejos que padecem pelas longas estiagens, das secas inclementes que assolam as terras áridas, da magrez estampada na pele, nos ossos sobressaindo na cara e até nos olhos. Num fundo cinzento e feio, pois não há como expressar noutras cores a feiúra da morte, da miséria extrema, do desalento e desencantamento, está o sertão e o seu povo, o destino, o caminho sem esperança do nordestino tangido pelas desventuras do tempo.
Quem nunca foi ao sertão, quem não conhece como é a vida por lá em época de sequidão, até que pode dizer que ali está apenas uma visão metafórica do artista sobre o sofrimento. Será? Ainda hoje, por mais que as bolsas famílias da vida queiram disfarçar realidades, encontra-se a menina morta nos braços da mãe que, ao lado de parte da família, é apenas mais uma lágrima escorrida. Isso mesmo, Criança Morta, a mesma criança desfalecida da pintura, ainda pode ser encontrada nas veredas sertanejas.
E na tela se vê a terra marrom-avermelhada, cor do massapé sertanejo, a mãe esquálida pranteando a criança morta que se estende em seus braços, uma figura entristecida um pouco mais atrás, que pode ser do pai ou avó, certamente martirizando-se pela impotência diante da situação, os irmãos aflitos e de olhos espanando as dores do sofrimento. A mãe, desesperadamente curvada sobre a criancinha, não mostra a face nem a feição de tristeza. Mas precisaria? Ao fundo avista-se um plano enegrecido, uma paisagem escurecida que não é de nuvem carregada, mas do sofrimento que se alonga em tudo.
Analisando a pintura portinariana, assim se expressou Larissa Gusmão Seixas (“A criança morta” - http://lgseixas.wordpress.com/2009/10/08/a-crianca-morta/): “(...) O quadro, como muitas outras obras do criador, tem um ar melancólico e retrata a morte de uma criança esquálida nos braços da sua família que chora por sua perda. Quase todos os personagens da obra estão com os olhos cheios de água, os pais da criança têm as cabeças e os ombros baixos – como se derrotados, a irmã mais velha tem um lenço na cabeça e a mais nova segura a cabeça do moribundo. Apenas o filho caçula não chora, por não ter idade suficiente para entender a morte. A cena acontece num crepúsculo e são utilizadas cores frias, acentuando a tristeza da ocasião. No local nada mais existe além da família e uma galinha semi-viva. Eles estão no meio de um deserto, há apenas um horizonte de terra seca e pedregulhos. Um lugar onde não se tem a mínima condição de sobrevivência. A família é exemplo de uma vida de miséria no sertão brasileiro. É impossível não se sentir sensibilizado com a imagem, pois além de a pobreza da família ser completamente visível – todos estão com as vestes sujas, descalços e subnutridos, eles possuem um semblante entristecedor de pessoas esquecidas pelo mundo, que passam necessidade sem nenhuma intervenção externa”.
Tem razão a resenhista, pois a primeira ideia que se tem ao se visualizar a tela é a de uma dor desmedida. Aos olhos de quem apenas imagina tanta dor e aflição, felizmente haverá o alento de se ter aquilo apenas como uma pintura. E sendo arte, talvez o artista pudesse fazer a criança renascer em outra tela. Contudo, e se os olhos que enxergam a tela são os mesmos que já avistaram, pisaram, sentiram aquela paisagem de perto e, de certa forma, também já choraram pela morte de uma desvalida criança sertaneja, não haverá como não dizer que na  tela está realidade e na vida estão as pinturas e desenhos sem artista.
Sou daquele mesmo sertão nordestino retratado pelo artista, caminhei pelos seus caminhos e avistei cenários de morte. Não vi famílias carregando seus mortos pelas estradas, mas vi a morte rondando tudo, vi o depauperamento por trás de cada perto e janela; ouvi o choro de crianças. E depois não ouvi mais nada. Será? Não voltei no dia seguinte pela mesma estrada.

Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

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