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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A CAÇA E O CAÇADOR: UMA FÁBULA DA SOBREVIVÊNCIA

Por: Rangel Alves da Costa*
Rangel Alves da Costa

A CAÇA E O CAÇADOR: UMA FÁBULA DA SOBREVIVÊNCIA

Num tempo não muito distante, quando as matas já não escondiam dentro de si muitas espécies de animais e cada vez mais os que restavam eram ameaçados pelo progresso, pela exploração desenfreada, pela captura de aves e bichos em extinção para o comércio clandestino das espécies, aconteceu um fato deveras impressionante.
Eis que num sertão longínquo, mas nem por isso com a mataria menos afetada do que em outras regiões, vivia um povo empobrecido que tinha na caça e na pesca fontes essenciais de sobrevivência. Plantavam quando podiam, colhiam quando a chuva fazia brotar e verdejar, se alimentavam quando a safra permitia.
Contudo, muitas vezes não nascia nenhuma planta no chão, faltava o alimento, o de comer. Sem o milho, o feijão, a abóbora, a melancia, a fava, o feijão de corda, o maxixe e o quiabo não havia como alimentar a família numerosa. E quando isso acontecia – e fato muito freqüente de acontecer – o sertanejo não encontrava outra saída a não ser se embrenhar nas veredas em busca de beira de rio ou nas matas em busca de caça.
Mas rio era muito longe, e agora quase sem peixe diante de tantas represas que foram sendo construídas por todo o seu leito. Já a mata ficava adiante e além, porém também com um problema já conhecido e constantemente debatido por todos: também quase que não havia mais caça. Acabou a cotia, a nambu, a seriema, a codorna, o veado, o caititu, a galinha d’água, o camaleão, a lebre, o bicho, o bicho, tudo.
Coisa difícil de se resolver. O problema é que não havia saída, pois ou ia arriscar caçar qualquer coisa ou os barrigudinhos se danavam a chorar e até corriam o risco de adormecer de barriga vazia. Se adormecessem! Então juntou a espingarda, o cantil, o embornal e se danou por dentro da mataria já rala, espessa, empobrecida e feia. Dificilmente bicho achava lugar pra se esconder nela.
Andou de um lado a outro, léguas e léguas, cansou e não achou nem sombra de uma caça. Sentou numa pedra e entristecido começou a chorar porque voltaria pra casa sem levar nada pra matar a fome dos meninos. Mas de repente ouviu um farfalhar nas folhagens e o som de alguma coisa que logo imaginou ser uma caça. Levantou rapidamente, preparou a arma e assim que ia disparar cegamente em direção à moita ouviu uma voz:
“Calma, por que tanta pressa em me matar? Sou eu, a cotia silvestre, talvez a última, mas ainda estou por aqui e à mercê da sanha assassinada do caçador. Talvez não queira lembrar, mas você mesmo e outros amigos mataram os meus pais, os meus irmãos, os meus primos. E antes disso outros já haviam acabado com meus avôs e toda a linhagem. Restei para sofrer de saudade e esperar que esse momento chegasse. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde esse momento chegaria, pois quase não existem mais por aqui outras espécies e vocês continuam caçando cada vez mais...”.
E o caçador, baixando a arma por um instante, e como se realmente falasse com gente, afirmou: “Mas é que lá em casa não tem de comer nenhum, não tem um só grão na panela nem um taco de pão por cima da mesa e os meus meninos estão de barriga vazia. Sei que a mata tá difícil de caça mesmo, mas num tive jeito senão vim tentar derrubar qualquer bicho que sirva pra assar ou cozinhar...”.
“Mas que situação a de nós todos, amigo caçador. Olhe ao redor e veja essa mata esturricada de seca, os barreiros todos sem um pingo d’água, nada pra matar a sede nem alimentar. Igualmente à sua família, principalmente seus filhos, eu também estou com fome e sede. Seus filhos ainda tem um pai que se preocupa com eles, ainda que tentando matar a gente. E eu, que nem família tenho mais por causa de vocês que entraram aqui e deixaram a natureza de luto? Mas como eu já vivi muito, estou realmente um tanto envelhecida, e os seus filhinhos ainda pequeninos, então não vou achar ruim se apontar essa arma pra mim e atirar. Vou me aproximar mais pra você não errar o disparo. Tá certo?”.
E então a cotia saiu detrás da moita e se mostrou inteira diante do caçador. Era tão bonita, com um pelo tão sedoso, porém com uns olhos tão entristecidos que parecia chorar por dentro. O homem não teve coragem de apontar a arma e começou a chorar novamente. “Mas por que chora meu bom caçador? Estou somente esperando ser acertada para me tornar no prato do dia de sua família. Vamos, pense neles e atire...”.
De repente o caçador se virou e sem se despedir tomou o caminho de volta, de cabeça baixa, pensando no que fazer quando chegasse em casa. Empurrou a pequena cancela, mas quando se voltou para dar um nó na corda que servia de cadeado enxergou a cotia logo atrás. Espantado, nem teve tempo de dizer nada diante da pressa dela em falar:
“Já que você preservou a minha vida, tive uma ideia que talvez possa lhe ajudar, mas infelizmente não é coisa que possa arranjar comida ainda pra hoje. É o seguinte...”. E foi explicando tudo.
Durante o resto do dia, entretidos com a cotia falante, os meninos nem lembraram a barriga vazia nem de chorar pedindo comida. Mas no outro dia, logo cedinho, o homem saiu acompanhado com o animal para a feira da cidade. E juntou tanto dinheiro com a apresentação da cotia falante que deu pra fazer a feira do mês inteiro.
E ainda na boquinha da noite desse dia ela se despediu de todos e foi embora pra sua mata. O trato também havia sido esse. Porém, assim que entrou no mato, não demorou muito e se ouviu um disparo. Outro caçador havia alcançado a falante em cheio.


Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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