Por: Frederico Pernambucano de Mello
Getúlio Vargas
O Estado Novo, de Getúlio Vargas, estava determinado a eliminar todos os “estadualismos anacrônicos” ainda ativos na periferia do Brasil. Os focos derradeiros de insurgência coletiva ligados ao mágico e ao heroico popular, a que a ditadura Vargas satanizava por igual, sob as denominações oficiais de “fanatismo” e de “banditismo”. Um ano antes, o melhor jornal do Nordeste no período, o Diário de Pernambuco, deixava patente esse luxo fora da lei, publicando foto de Maria Bonita em composição digna de François Boucher, sentada elegantemente em clareira da caatinga, vestido de domingo em linho azul claro pincelado de riscas – um tenue de ville, como requintou o repórter - cabelos assentados em “pastinha”, presos por broches de ouro, várias voltas ao pescoço do mesmo metal, tendo ao pé os cachorros famosos do marido, Guarani e Ligeiro, tudo sob a manchete explosiva: “Maria do Capitão – a Madame Pompadour do Cangaço”.
Não teria ido além dos 27 anos de vida a mais famosa vivandeira do Brasil, a quem a história acendeu uma vela no dia 8 de março último, julgando assinalar os cem anos de seu nascimento. Acendeu por engano, ao que se constata no momento, a data festejada parecendo não ser a verdadeira. No vazio de registro escrito, que persistiu até meses atrás, esse 8 de março teria prosperado com base no testemunho de parentes, fonte reconhecidamente precária quando se trata de datas. Para não falar do caráter confuso e pouco explicado desse testemunho. Contra o qual se insurge agora o resultado de levantamento feito há pouco no arquivo da Diocese de Jeremoabo, Bahia, pelo sociólogo Voldi Ribeiro, auxiliado pelo padre Celso Anunciação, que deu como resultado a descoberta do batistério da cangaceira-mor. Documento que a torna mais velha em pouco mais de um ano, vez que nascida aos 17 de janeiro de 1910, ao que reza o papel da sacristia amarelecido pelo tempo. Teria morrido, assim, com 28 anos e seis meses de idade, naquele 28 de julho de 1938, para os que apreciam as exatidões. E conseguido negar um pouquinho de idade para o marido famoso, como toda mulher que se preza...
Sociólogo Voldi Ribeiro e a nova data de nascimento da Maria mais famosa do sertão.
O pouco que se sabe de Maria Gomes Oliveira está aí. Resta a pergunta: e o apelido Maria Bonita - que engoliu inteiramente o nome de batismo e apelidos anteriores nos meses finais da existência truncada - de onde teria vindo? Quem responde, afinal, pela cunhagem do cognome gigantesco, cada vez mais divulgado tanto nas letras científicas quanto nos escritos de arte, além de encerrar apelo poético à flor da pele?
É certo que a sujeição completa do nome pelo apelido se dá ainda em vida da Rainha do Cangaço, de maneira a não haver lugar para o Maria Gomes Oliveira, ou mesmo para cognomes anteriores, como Maria de Dona Déa, ou Maria de Déa de Zé Felipe, ou Maria do Capitão, quando sobrevém a morte desta em 1938. A imprensa em peso, os jornais da região e do Sudeste, as agências de notícias de maior influência sobre a opinião pública do período, a exemplo da Nacional, da Meridional e da Estado, ignoram, em coro, o nome real em benefício do apelido sonoro que se impusera como um raio em apenas poucos meses. Um fenômeno de comunicação a ser compreendido. Vamos examiná-lo.
Para que não reste dúvida sobre a absorção repentina das designações anteriores pelo novo apelido, oferecemos abaixo a transcrição literal do telegrama histórico do tenente João Bezerra da Silva, o vitorioso do combate do Angico, dirigido ao coronel Teodoreto Camargo do Nascimento, comandante-geral do Regimento Policial Militar do Estado de Alagoas, e passado no mesmo dia do acontecimento extraordinário, não custa repetir, 28 de julho de 1938, em que o apelido Maria Bonita brilha isolado, com a suficiência das denominações já consagradas:
Para que não reste dúvida sobre a absorção repentina das designações anteriores pelo novo apelido, oferecemos abaixo a transcrição literal do telegrama histórico do tenente João Bezerra da Silva, o vitorioso do combate do Angico, dirigido ao coronel Teodoreto Camargo do Nascimento, comandante-geral do Regimento Policial Militar do Estado de Alagoas, e passado no mesmo dia do acontecimento extraordinário, não custa repetir, 28 de julho de 1938, em que o apelido Maria Bonita brilha isolado, com a suficiência das denominações já consagradas:
Piranhas - n. 31 – Pls. 81 – Data 28 – Hora 14
Cmte Teodoreto – Maceió
Rejubilado vitória nossa força vg cumpre-me cientificar vossoria que hoje vg conjuntamente volantes aspirante Ferreira sargento Aniceto vg cercamos Lampeão no ugar Angico no Estado Sergipe vg o tiroteio resultou morte nove bandidos duas bandidas inclusive Lampeão vg Angelo Roque vg Luiz Pedro vg Maria Bonita vg os quais foram reconhecidos pt Da volante aspirante Ferreira houve baixa um soldado saindo outro ferido pt Tambem me encontro ferido pt Saudações Tenente João Bezerra – comte volante.
Não é outro o emprego que vamos encontrar no folheto A morte de Lampeão, de João Martins de Athayde, escrito em cima do acontecimento e vendido às grosas para todo o Nordeste, segundo nos revelou o antropólogo Valdemar Valente, frequentador da oficinazinha acanhada do poeta, nos estreitos da Rua Velha. Vejamos dois dos versos com que Athayde faz a crônica, a bem dizer instantânea, da morte da companheira de Lampião:
A tal Maria Bonita,
Amante de Lampião,
Sua cabeça está inteira,
Mostrando grande inchação,
Mas assim mesmo se via,
Uns traços da simpatia
Da cabocla do sertão.
Morreu Maria Bonita:
Que Deus tenha compaixão,
Perdoando os grandes crimes
Que ela fez pelo sertão,
Nos livre de outra desdita,
Que outra Maria Bonita
Não surja mais neste chão.
Vamos finalmente à revelação sobre a origem do apelido, em que o mérito da descoberta fica todo para o acaso, ao historiador se reservando somente o exame rigoroso da informação oral recebida, segundo a praxe da disciplina. Conversando em 1983 com o jornalista Ivanildo Souto Cunha, muito relacionado no Recife da época e homem sempre disposto a ajudar os amigos, ouvimos dele que era sobrinho do também jornalista e escritor Melchiades da Rocha, natural de Sertãozinho, hoje Major Isidoro, no Estado de Alagoas. E que este, bem acima dos oitenta anos de idade, morava no Rio de Janeiro, pouco saindo do apartamento que tinha no Flamengo, por ter a esposa perdido a vista.
Jornalista Melchiades da Rocha ao lado de Noratinho, da volante do fatídico cerco a Angico
Ao longo dos anos 30, Melchiades tinha sido um dos bons repórteres investigativos do jornal A Noite e da excelente revista semanal conexa a este, A Noite Ilustrada, do Rio de Janeiro, veículos de uma empresa de prestígio em todo o continente, que se manteve pujante até ser encampada pela ditadura de Getúlio Vargas, o chamado Estado Novo, em 1940, sob a alegação cavilosa de que o governo precisava de um jornal na situação de guerra que se abria na Europa.
Cortando a história para o que nos interessa, esclarecemos que Melchiades foi o primeiro repórter da grande imprensa brasileira a chegar à grota do Angico naquele final de julho de 1938, poucos dias passados apenas da morte de Lampião. Cadáveres ainda insepultos no leito de pedras do riacho do Ouro Fino, enegrecidos por um tapete de urubus ocupadíssimos. A viagem aérea, feita no trimotor Tupã, do Condor Syndicat alemão, se cumprira em dezesseis horas, computadas as escalas entre o Rio de Janeiro e Maceió. Com o que juntou na aventura de 1938, e mais o fundo de recordações sertanejas que tinha tido o cuidado de manter vivas desde quando deixara a terra natal em anos verdes, Melchiades publicou um livro muito interessante dois anos depois, a que deu o título de Bandoleiros das caatingas, no gênero que Danton Jobim viria a batizar de “reportagem retrospectiva”.
Era esse homem baixinho, animado como um esquilo, que tínhamos diante de nós naquele começo de manhã da primavera carioca de 1983. Uma fonte de primeira ordem, a se confirmar pela meticulosidade do conhecimento especializado que despejou sem parar na primeira hora de conversa. De monólogo, para ser preciso, em que aprendemos muito.
Num dado momento, levanta-se depressa, vai ao quarto e volta com uma fotografia do que poderíamos chamar de salão da grota do Angico, onde ficava a barraca do chefe e de sua mulher, debaixo de uma craibeira que não existe mais. No meio da cena, caída de barriga no chão e já sem a cabeça, cortada antes mesmo de se extinguir inteiramente o combate, aparecia o cadáver de Maria Bonita, metido em vestido bem curto.
“Está vendo, Frederico, mandei fazer essa chapa para mostrar o quanto ela era bem-feita, mesmo tendo seios pequenos e nádega um pouco batida”, agitou-se o velho jornalista, devolvido à emoção de quase sessenta anos passados. Foi quando respirou fundo e lançou a pergunta: “Você sabe como apareceu esse apelido Maria Bonita?”. E emendou, diante do nosso queixo caído: “Não apareceu no sertão, não. Foi coisa de repórteres daqui do Rio de Janeiro, mesmo. Eu estava entre eles”. Um romance de sucesso, do começo do século, requentado em filme de longa-metragem lançado poucos meses antes do desmantelamento do bando de Lampião, eis a origem de tudo, corria a explicar.
Começava a ser revelado o mistério de tantos anos. Esclarecido principalmente o fenômeno de comunicação que impusera o apelido aos meios jornalísticos de modo completo e em apenas poucos dias. Um conluio tácito entre jornalistas jovens, sem propósito definido, salvo o de simplificar a informação nas redações, a vincular algumas das cabeças mais ativas da imprensa brasileira do período, nucleada no Rio de Janeiro. De volta ao Recife, cuidamos de examinar as pistas deixadas por Melchiades.
Afrânio Peixoto
O romance Maria Bonita, aparecido em 1914, reforçara a fama repentina do baiano Júlio Afrânio Peixoto, tornando-o conhecido nacionalmente. Era de Lençóis, na região das Lavras Diamantinas, do ano de 1876, vindo a se criar em Canavieiras, às margens do rio Pardo. Em Salvador, muito cedo Afrânio Peixoto se fizera médico, romancista, dramaturgo, ensaísta, historiador, professor, crítico literário, chegando a deputado federal por seu Estado. Morava no Rio de Janeiro desde a virada do século XIX para o XX, onde a Academia Brasileira de Letras irá buscá-lo para fazer dele nada menos que o sucessor de Euclides da Cunha na cadeira de número sete, no ano de 1910.
Homem requintado no que escreveu, para bem compor o romance de estreia, A Esfinge, lançado em 1911, sentira a necessidade de conhecer pessoalmente o Egito, demorando-se ali por semanas, sem perder a oportunidade de um olhar de estudos sobre os altos e baixos da Grécia. Ao morrer, em 1947, deixando obra extensa nas letras artísticas e científicas, o romance que nos interessa aqui, o Maria Bonita, tinha merecido ao menos oito edições oficiais ao longo de quatro décadas. E Maria Bonita dera nome a muita mocinha registrada em cartório no começo do século passado.
Bornal e vestido que pertenciam a Rainha do Cangaço, tomado por morte, em 1938 - da coleção pessoal do autor.
Como produção simbolista, a história da matutinha emigrada com a família dos sertões secos de Condeúbas para os brejos de Canavieiras consegue chegar aos anos 30 e 40 com apelo de leitura, depois de sobreviver às bordoadas da crítica moderna do meado dos anos 20. Não surpreende. Para além dos elementos regionais plantados meticulosamente na trama, a essência do romance nos põe diante de alguma coisa muito maior, resultante da transposição para o interior do Nordeste do mito universal da Helena de Troia. A mulher pura de pensamento e de conduta, que padece pela vida afora o ônus de uma beleza que enlouquece os homens, sem conseguir evitar que as maiores desgraças se abatam sobre as pessoas que lhe são mais caras.
A povoação do Jacarandá, entregue à vida simples do trato do cacau, da piaçava e dos diamantes, sendo arrastada pelo destino de tragédia da Maria Bonita de Afrânio Peixoto, e findando por ser destruída ao modo de uma Troia cabocla fiel ao destino da original, pintada por Homero em alguns dos cantos mais inspirados da Ilíada.
Está aí a história de Maria Gonçalves, a Maria Bonita da ficção brasileira, que findaria por batizar a outra Maria, a Gomes Oliveira, a Maria real da tragédia do cangaço. Para o que há de ter conspirado o retorno do nome à evidência, na circunstância do lançamento ruidoso da versão cinematográfica do livro, ocorrida em agosto de 1937, no Cinema Palácio, na Cinelândia, coração artístico do Rio de Janeiro à época.
Desde o mês de janeiro, a imprensa alimentava a curiosidade do público com flashes sucessivos a respeito do longa-metragem. Ao longo do ano, a nossa melhor revista especializada, a Cinearte, do Rio de Janeiro, traria matérias em cada uma de suas edições mensais, cobrindo os acontecimentos de antes e depois do lançamento. Fechada a ficha técnica, apressara-se em trazê-la ao público, nomeando o produtor, André Guiomard; o diretor, o fotógrafo de cinema francês Julien Mandel, assistido pelo pernambucano José Carlos Burle; o sonorizador, Moacir Fenelon; os dois galãs, Vítor Macedo e Plínio Monteiro; os atores Henrique Batista, Lila Olive, Júlio Zauro, Marques Filho, Ricardino Farias, Mário Gomes, Sérgio Schnoor, dentre outros; os dois compositores e cantores, ambos nordestinos, Augusto Calheiros, o Patativa do Norte, e Manezinho Araújo, o Rei da Embolada, trazendo para a película o prestígio de que desfrutavam no rádio. Por fim, a atriz do papel-título, a Maria Bonita do cinema, Eliana Angel, pseudônimo de Suely Bello.
Resta dizer que o projeto do filme sobre o romance de Afrânio Peixoto fora registrado, ainda nos anos 20, por certa Brazilian Southern Cross Productions, de Hollywood, com quem os realizadores de 1937 se entenderam, e que as locações foram feitas em Barra Mansa, Rio de Janeiro.Está aí o modo como foi batizada para a história a mulher de guerra mais representada simbolicamente pelo povo brasileiro até hoje. Ao contrário do que se deu com o vulgo de seu companheiro, o Lampião gigantesco, que parte da cultura popular sertaneja para ganhar o mundo, o apelido Maria Bonita nasce da cultura urbana, erudita e consagrada das academias - se bem que do esforço incessante destas por sintonizar com o Brasil em estado puro das periferias regionais – para somente depois invadir o sertão, já ganha a batalha pela opinião pública do Sudeste. Uma engenhosa viagem de volta que se cumpre, além de tudo, ao feitio do paradoxo que tanto encantava Oscar Wilde: a vida imitando a arte
Frederico Pernambucano de Mello
Historiador, Academia Pernambucana de Letras
Palestra lida no Museu do Estado de Pernambuco, Recife, a 14 de dezembro de 2011
NOTA CARIRI CANGAÇO: Gostaríamos de dizer de nossa felicidade em contar com a presença do pesquisador e historiador Frederico Pernambucano de Mello, em nossa página do cariricangaco.com ; sua gentileza em nos encaminhar a presente matéria como também algumas das fotografias que a ilustram são motivo de satisfação à toda familia Cariri Cangaço.
Extraído do blog: Cariri Cangaço
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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