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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

LEMBRANÇAS DA CASA VELHA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

LEMBRANÇAS DA CASA VELHA

Moça e rapaz passam pela frente, criança vai logo atirando uma pedra na porta, gente de mais idade dá apenas uma rápida olhada; somente um ou outro, já na idade da velhice mesmo, é que olha com referência para a casa velha.

Certamente muita gente nem imagina que há vida morando ali dentro. A porta está quase sempre fechada ou encostada, dificilmente a janela se abre para a ventania do entardecer. Não se ouve barulho, passos, algazarra, gritaria, nada, apenas o silêncio dos tempos. Mas ali existe ser vivente.

Se já é entardecer ou mesmo noite, a luz fraquinha do candeeiro pouca diferença faz pra quem está do lado de fora. Sem iluminação elétrica, a chama que povoa e acompanha cada passo é de candeeiro mesmo, ainda que ali também tenha uma velha lamparina pendurada num entrevão saindo da saleta e indo até a cozinha.

Por fora apenas uma casinha mesmo, antiga, quase caindo, pobre demais, coisa já entregue à sorte de um vente mais forte ou de uma trovoada de pingo feroz. O pior é que todo mundo dizia que a casinha não ia suportar mais uma estação, que logo estaria no chão, levando quem estivesse lá dentro com sua história e tudo.

Mas quem estaria lá dentro? Para uns tanto faz, porque nem sabe direito ao certo de quem se trata; para outros apenas um velho senhor que prefere viver na solidão dos seus aposentos, sem qualquer importância dar ao mundo lá fora; e para outros, gente de um tempo mais antigo, quem morava ali não era nem gente e sim a própria lenda, a história, o mito, a originalidade em pessoa.

Ainda molecote, sem nunca colocar os pés numa escola nem aprendido a riscar o nome, já montava em cavalo brabo e se metia na mataria fazendo a juntada de boi valente. E foi numa dessas carreiras que um galho de pau pereira lhe fez um arranhão no lado esquerdo do rosto que até hoje é marca visível.

Assim que o estrago cicatrizou com mastruz, velame e outras plantas do mato, o menino não deixou passar muito tempo e fez uma coisa difícil de acreditar. Tendo colocado na cabeça que aquela marca no rosto seria para sempre o seu sinal de sertanejo, achou que o lanhão iria desaparecer para sempre e quando já estava completamente sarado se cortou novamente, no mesmo lugar, e com o mesmo toco da árvore.

Não deixou que sua mãe colocasse nenhum remédio do mato no ferimento e todo dia ia pra caatinga colocar seiva de baraúna por cima. Tinha ouvido falar que o leite dessa árvore sarava o ferimento preservando a marca provocada pela ponta de pau. E é por isso que até hoje o velho tem orgulho de passar a mão pelo rosto e sentir ainda a marca na pele já totalmente enrugada.

E foi por causa dessa cicatriz que teve de duelar debaixo do sol sertanejo e sair do lugar por uns bons tempos. A família do provocador havia jurado vingança e como já era sua intenção conhecer um pouco do mundo lá fora, pegou a mala e uns trocados e foi fazer guerra onde sabia que havia um pé de revolução.

Sem entender nada de razão pra lutar, bastava ouvir dizer que em determinado lugar um grupo estava se organizando para derrubar um tirano do poder, e lá ia o rapaz fazer valer o seu grito revolucionário. Só voltou desses distantes campos de batalha quando soube que aqueles que havia ajudado a vencer batalhas estavam se transformando nos mesmo tiranos contra os quais lutara.

Voltou ainda a tempo de entrar no bando cangaceiro de Lampião. Apelidado de Candango entre os bandoleiros, sabia que só tinha sido aceito pelo Capitão porque era filho de um velho coiteiro, homem de confiança de toda cangaceirada. Por isso mesmo logo procurou ser um dos mais valentes e destemidos, havendo notícias de ter enfrentado sozinho uma volante inteira.

Tal valentia lhe causou inveja dentre os próprios cangaceiros. E pra não acontecer o pior pediu licença ao próprio Lampião pra se desligar do grupo e se juntar ao grupo de Corisco, que reinava por outras bandas do sertão. Contudo, nem teve tempo de entregar às mãos do Diabo Louro a carta enviada pelo Capitão. Estava embrenhado na caatinga quando soube do ocorrido lá pela Gruta do Angico, matando o rei do cangaço, sua bela Maria e mais nove cangaceiros.

Deu a volta e resolveu seguir outra vida. Aliás, deu várias voltas sem nunca se acostumar com outra vida. Até que uma noite, deitado no alpendre de uma velha casa abandonada, sonhou que num lugar mais distante havia uma botija e que se ele tivesse coragem de desenterrar seria um homem rico.

Andou oito meses e oito dias até encontrar a casa descrita pela alma do outro mundo, até chegar ao local onde haveria de estar enterrada a verdadeira fortuna. A casa estava abandonada e se achou logo no direito de tomar posse e por ali foi ficando sem ninguém jamais reclamar. Encontrou o lugar indicado, cavou um buraco profundo até encontrar o baú com a fortuna.

O problema é que colocou tudo novamente no lugar e até hoje continua de portas fechadas, desconfiado do mundo, guardando com todo cuidado, e de arma de lado, a sua imensa fortuna de dinheiro que não vale mais nada.


Rangel Alves da Costa* 
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com   

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