Rangel Alves da Costa*
VEXAME NO REINO: O SANGUE DA PRINCESA NÃO É AZ
Dizem que certo dia, num reino muito distante, num reinado de linhagem e ancestralidade que remontavam aos tempos mais antigos, ocorreu um incidente jamais esquecido.
Reino poderoso, império respeitado pelos quadrantes do mundo, possuía uma importância tão peculiar, num sentimento de realeza inigualável, que se passou a admitir sem contestação que nas veias da família real corria sangue azul.
Quer dizer, diferentemente dos súditos, das outras pessoas mundo afora e principalmente da casta comum, o sangue real era de um líquido azulado, composto de plasma e glóbulos dourados. Por isso mesmo que o incidente acontecido tomou dimensões inimagináveis.
Eis que o bobo da corte adentrou no recinto palaciano em tempo de se acabar, chorando, gritando, parecendo que o mundo estava sendo destruído lá fora ou que o reino inimigo estava às portas da fortaleza. E foi gritando em direção ao assustado casal soberano:
“O sangue da princesa não é azul! O sangue da princesa não é azul! Eu vi majestade, eu vi com meus tristes e arrependidos olhos que o sangue da princesa não é azul, é vermelho!”.
De tanto ouvir que realmente tinha sangue azul, numa mentira repetida que acabou se tornando com feições de verdade, a rainha levou a mão ao peito e teve de ser alcançada pela criadagem para não desabar ao chão. O rei, este então, esbugalhou os olhos, avermelhou as faces, suou quente demais e depois gelou, para enfim falar:
“Levem esse mentiroso para o fosso dos jacarés. Não pode ser, não pode ser verdade que a minha filha, a linda princesa, não tenha nas veias sangue correndo de outra cor que não o azul. Chamem o corpo médico real, todos os sábios, feiticeiros e alquimistas, mas quero a verdade sobre isso agora. Deve estar doente, minha linda filha deve estar muito doente. Onde está a princesa? Tragam-na até aqui agora mesmo”.
A balbúrdia que se formou dentro do palácio não foi menor do que o quiproquó existente lá fora. Uma multidão de curiosos com olhos arregalados em direção ao dedinho esbranquiçado da princesa e um filetezinho vermelho de sangue, fruto de um espinho de roseira enquanto colhia flores para alegrar seu coraçãozinho solitário.
A ralé do reino realmente não acreditava no que viam. Não podia ser, era impossível de se acreditar. Uma gotinha vermelha de sangue no dedinho da linda princesa era demais, coisa do outro, magia, feitiçaria ou coisa parecida. Por isso mesmo tanta gente orando, se benzendo, chorando, furando também os dedos para ver se o sangue era da mesma cor do da princesa.
A princesinha, coitada, ficava realmente temendo diante daquela situação. Não sabia muito o que fazer, pois mesmo sabendo que quando se machucava surgia na pele um líquido vermelho, ainda assim havia sido ensinada para ignorar aquela cor e ter a certeza do sangue azul que possuía. Ensinaram até que ela podia escolher se azul da cor do mar, do céu ou azul da cor da penugem do passarinho real.
E eis que de repente o próprio rei surge correndo, aos gritos, perguntando o que havia acontecido com sua filhinha. E então ela meigamente respondeu que não havia acontecido nada, apenas estava colhendo umas flores quando um espinho de roseira furou bem na ponta do dedinho. E estendeu a mão para que seu pai observasse mais de perto. E ao enxergar o líquido vermelho ainda brilhoso, o soberano desabou desmaiando.
Ao acordar do susto, a primeira coisa que fez foi baixar um decreto real afirmando que seria acusado de infâmia e condenado ao penhasco todo aquele que ousasse dizer ter visto sangue vermelho no dedo da princesa. E fechou a ordem confirmando o azul do sangue real, como já estava provado no manto azul do céu do qual ele se alimenta.
E depois selou o decreto com o sangue de um dedo espetado a espinho naquele momento. E foi quando o seu ordenança pronunciou: “Majestade, que belo jardim de violetas azuis embelezam as tuas veias!”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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