Por: Melquíades Pinto Paiva
Melquíades Pinto Paiva
Desde a infância sertaneja em Lavras da Mangabeira (sul do Ceará), tive a atenção despertada pela saga do cangaço no nordeste do Brasil. Com o passar do tempo, comecei a juntar a bibliografia pertinente ao fenômeno, apresentada nas formas as mais diversas, publicada em localidades espalhadas na imensidão do nosso país. É tão grande a quantidade dos títulos aparecidos, que deixa confusa qualquer pessoa tida como organizada, tornando difícil o encontro deles nos acervos das bibliotecas. Em consequência, adotei duas atitudes: tentei classificar as publicações disponíveis, do que resultou pequeno trabalho sobre o assunto (PAIVA, 1997); iniciei a redação de fichas com os comentários sobre cada texto em exame, para facilitar a separação dos que têm real valor, assinalando mediocridades e compilações, além de condenar as baboseiras escritas. A primeira coleção de tais fichas foi mostrada ao meu sempre lembrado amigo Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia (1920 – 2005), que recomendou a sua publicação e a continuidade do esforço empreendido. Disso resultou a série Bibliografia comentada do cangaço, encontrada na Coleção Mossoroense, agora no volume V (PAIVA, 2001 – 2008). Consolidando os cinco volumes já aparecidos, e acrescentando novas fichas posteriormente escritas, está indo para o mercado livreiro nova publicação ilustrada (PAIVA, 2012).
Renato Casimiro, Manoel Severo, Melquíades Pinto Paiva e Luitgarde Oliveira Barros
1 – Herói ou bandido. Lampião praticou boas ações, pequenas e raras, tratando os sertanejos pobres. Em contrapartida, foi um facínora sanguinário, assolando populações e propriedades no espaço das secas nordestinas. Contribuiu para o atraso da economia regional, pela sistemática destruição de patrimônios dos que não aceitavam as suas extorsões. Um bandido, flagelo das caatingas!
2 – Iniciação no cangaço. Muitos dos cangaceiros entraram para a vida bandoleira em busca de vingança pessoal, por causa das violências sofridas nas mãos dos “coronéis de barranco” e policiais. Poucos praticaram suas vinganças e deixaram os caminhos do crime. Em sua maioria, eles se tornaram bandidos, perdendo o chamado “escudo ético”.
3 – Ação revolucionária. Não vejo qualquer ação revolucionária dos cangaceiros. Eles serviram aos “coronéis de barranco”, grandes coiteiros e sócios em negócios escusos. Venderam serviços e contribuíram para a permanência do coronelismo sertanejo e do latifúndio explorador dos pobres. A maior vontade de Lampião era se tornar declarado fazendeiro, comprando terras com dinheiro roubado, entregues a gente graúda, pois não podia registrá-las em seu próprio nome.
4 – Fim do cangaço. A modernidade chegou ao domínio das caatingas com as estradas e as comunicações, diminuindo o isolamento das populações sertanejas e abrindo novas perspectivas de vida, inclusive por meio da emigração para o sudeste do Brasil. O cangaço, na forma tradicional, encontrou seu fim com o advento do Estado Novo, unitário e ditatorial, que causou abalo no coronelismo sertanejo, suporte maior dos bandidos das caatingas.
5 – Vida dos cangaceiros. Em primeiro lugar, os cangaceiros foram sertanejos, conhecedores da ambiência em que viveram, e por isto muito adaptados ao bioma das caatingas. A inovação que houve foi o constante andar, carregando a própria mudança, sem rumo certo, sem destino de costumeira morada. Intercalados, os refrigérios dos coitos.
6 – Estratégias de sobrevivência. Os cangaceiros tinham conhecimentos dos ambientes que usavam no caminhar e nos combates, o que lhes deu condições fundamentais de sobrevivência. Além das técnicas de luta adaptadas às caatingas, eles se mostraram bons despistadores, com diferentes práticas de esconder os rastros, desaparecendo nos espaços semiáridos, em verdadeira prática do mimetismo. Tudo isto, sem falar na bem montada rede de coiteiros, informantes e vendedores de armas e munições. Por fim, é necessário ressaltar o poder de corromper os comandantes das volantes.
7 – Conservadorismo cangaceiro. Os cangaceiros foram extremamente conservadores, combatendo todas as coisas que trouxessem modernidade aos sertões nordestinos, contrários à construção de estradas de rodagem e montagem de redes telegráficas, que lhes reduziam o poder de mando. Apesar disto, gostavam de muitas práticas do viver urbano e litorâneo, expressas no comer e beber, no vestir e divulgação de imagens do seu viver.
8 – Escritores cangaceiros. É imensa a literatura cangaceira. Não sei como destacar o que considero de maior valor. Vou apenas indicar três livros, de épocas diversas: Gustavo Barroso (1930) – Almas de lama e aço: Lampeão e outros cangaceiros; Frederico Pernambucano de Mello (1985) – Guerreiros do Sol: o banditismo no nordeste do Brasil; Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (2000) – A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Há um curioso título, pequeno livro de minha autoria – Melquíades Pinto Paiva (2004b) – Ecologia do Cangaço, que destaco por causa da originalidade do enfoque.
9 – Cangaceiros e traficantes – São bem evidentes as correlações entre os cangaceiros e os traficantes, os primeiros nos espaços rurais nordestinos e os segundos nos arredores dos grandes centros urbanos. Na verdade, velhos professores e modernos discípulos!
10 – Persistência do mito. As literaturas de cordel e de ficção tentam cristalizar o mito de bondade de Lampião, o mesmo acontecendo com o cinema. Em verdade, procuram um paradigma da coragem do povo nordestino e de sua afirmação no contexto nacional. O esquerdismo do cangaceiro é sonho de desavisados, inocentes ou safados!
Referências Bibliográficas
BARROS, L. O. C. – 2000 – A Derradeira Gesta : Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. MAUAD Editora Ltda., 360 pp., Rio de Janeiro.
BARROSO, G. – 1930 – Almas de lama e aço : Lampeão e outros cangaceiros. Comp. Melhoramentos de S. Paulo, 125 pp., [4] ests., São Paulo.
MELLO, F. P. – 1985 – Guerreiros do Sol : o banditismo no nordeste do Brasil. Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, XIII + 310 pp., [30] ests., Recife.
PAIVA, M. P. – 1997 – Comentários sôbre a bibliografia do cangaço no nordeste do Brasil. Coleção Mossoroense , série B / número 1.384, 14 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2001 – Bibliografia comentada do cangaço – I. Coleção Mossoroense, série C / volume 1.253, 118 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2002 – Bibliografia comentada do cangaço – II. Coleção Mossoroense, série C / volume 1.302, 84 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2003 – Bibliografia comentada do cangaço – III. Coleção Mossoroense, série C / volume 1.396, 105 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2004a – Bibliografia comentada do cangaço – IV. Coleção Mossoroense, série C / volume 1.434, 105 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2004b – Ecologia do Cangaço. Editora Inteciência Ltda., XII + 74 pp., 3 figs., 45 fotos, Rio de Janeiro.
PAIVA, M. P. – 2008 – Bibliografia comentada do cangaço – V. Coleção Mossoroense, série C / volume 1.532, 89 pp., Mossoró.
PAIVA, M. P. – 2012 – Cangaço : uma ampla bibliografia comentada. Editora IMEPH, 392 pp., ilus., Fortaleza.
Melquíades Pinto Paiva
O autor é professor emérito da Universidade Federal do Ceará.
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