Por: Honório de Medeiros
O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto.
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Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar.
Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos e anos a sabão, anil e água.
Por fim sua vestimenta: um vestido cor parda, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco retorcido e molhado, propositadamente concebida para receber e acomodar o saco de roupas sujas.
Pois Comadre, como se pode perceber da leitura do texto, era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E, muito embora a faina duríssima, estiva sempre feliz.
Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o meu sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa, na hora do almoço.
Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia, por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha, um espaço aberto, parte acobertado por um telheiro antigo, parte livre e dando para a saída lateral da casa.
Entrava e saía o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos... Todos embalados por uma xícara de café quente pelando e uma boa fatia de pão com manteiga.
Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. Naquele local, sem que eu me desse conta na época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente.
Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.
Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo.
Poderia ela ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.
Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntava:
- “Comadre, por que a senhora é tão feliz?”
- “Meu filho”, me respondia com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.”
- “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo, a violência, a fome, as doenças...?”
- “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.”
E seguia lépida e fagueira, a chistar com um e com outro, sem faltar ao respeito, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó cego em toda a minha metafísica.
Extraído do blog do escritor, professor e pesquisador do cangaço:
Honório de Medeiros
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/09/comadre.html
Olá, José Mendes! Obrigada pela visita no meu blog. Eu já conhecia o seu, faz tempinho, excelente fonte de consulta e informação, por sinal. Sim, você perguntou sobre minha mãe, como não deixou e-mail e não encontrei aqui no seu, sou filha de Inalda Cabral Rocha, com muita satisfação. Um grande abraço. Lúcia Rocha. E-mail: luciaro@uol.com.br
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