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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Dona Sila - Cangaceira


Confira a transcrição da entrevista concedida pela saudosa ex cangaceira Sila à revista TPM edição nº 1, Maio de 2001.

Tpm - Como a senhora fazia para ficar bonita no meio do mato?

Sila - Só punha ouro, chapéu bonito, bornal todo enfeitado, roupa cheia de bordado. Eu tomava banho com perfume! Ainda hoje sou vaidosa. Só que hoje, se tomo um banho, me troco e não ponho perfume. Para mim, perfume me lembra de mato, e é como se eu não tivesse tomado banho. Às vezes, o cheiro de perfume ficava tão forte e tão ruim entre a gente, que teve muita história de a polícia achar cangaceiro por causa do fedor. Era muito quente, muita roupa, então suava...

Tpm -  A senhora engravidou no meio do mato, né?

Sila - Umas três vezes.

Tpm - Onde a senhora deu à luz seu filho?

Sila - Pari no mato mesmo, lá por perto, onde tinha água. Estava com 

Maria Bonita

Maria, os homens saíram todos de perto. Comecei a sentir as dores, aí ela armou uma coberta no chão e eu deitei. Fiz muita força a tarde toda e, à noite, o menino nasceu. Foi ela que fez meu parto. Daí, os homens vieram correndo para ver como ele era. Nossa, eu sentia tanta dor, parecia que iam abrir minhas cadeiras, ave-maria... Aí, enfiei vários panos dentro da calça para estancar o sangue e seguimos viagem.

Tpm - O que aconteceu quando levaram a senhora?

Sila - Naquela noite que eles chegaram, meus primos arranjaram uma sanfona para tocar e vieram vários cangaceiros. Eu nem olhava na cara de Zé Sereno, só rezava: 

O cangaceiro Zé Sereno - companheiro de Sila

"Meu Deus, fazei com que esse homem não queira que eu saia" [quando os cangaceiros raptavam uma mulher, o termo usado era "sair", ou "tirar a moça"]. Quando foi de manhã cedinho, a cangaceira 

Neném e Luiz Pedro - companheiros

Neném veio e disse que eu me preparasse para sair. Era sempre assim, eles mandavam uma mulher dar o aviso, desse jeito "encorajava" a outra. Saí com o vestido fino de baile que eu estava.

Tpm - Qual era o seu papel no bando? 

Sila - Eu costurava as minhas roupas, bornais... Não tinha obrigação de nada. Fazia o que queria, comia o que queria. Não tinha esse negócio de obrigação como dona-de-casa; eu era dona-do-mato.

Tpm -  E, nos tiroteios, a senhora atirava?


Sila - Não, nunca precisei. Quase levei tiro na cabeça, isso sim, de estar deitada aqui e levantar um pedaço de terra assim do meu lado. A única mulher que atirou mesmo foi a 

Dadá e Corisco - casados - Cangaceiros

Dadá [mulher de Corisco, passou a participar dos combates no lugar do marido, que teve parte dos braços amputados]. As outras não atiravam porque a nossa parte era só dar força aos maridos. Não sei, parece que eles confiavam muito na gente e a gente confiava muito neles.

Tpm - Como foi o tiroteio que matou Lampião? Onde vocês estavam?

Sila - O nosso bando encontrou com o de Lampião, que já estava lá em Angico [nome da fazenda em Sergipe onde Lampião morreu]. Passamos muita sede até chegar lá, estávamos todos cansados. Quando foi de noite, 

Lampião e Antonio Ferreira - seu irmão mais velho

Lampião tirou uma melancia e ofereceu para mim. Fomos eu e Maria chupar a melancia sentadas numa pedra, no alto de uma ribanceira. Ficamos lá, ela me convidou para fumar e ficamos falando as coisas de sempre, que aquilo não era vida. Foi a última conversa que ela teve. Enquanto a gente conversava, vi uma luz que acendia e apagava, até perguntei a ela se era uma lanterna. Ela disse que devia ser vaga-lume. Se eu tivesse descido e falado com Zé Sereno, não teria acontecido o que aconteceu, porque ele contaria a Lampião e todo mundo teria se equipado.

Tpm -  A senhora deixou o cangaço depois da morte de Lampião?

Sila - Não, nós ainda ficamos um tempo no mato. Deixei só em 1938. Nos entregamos na Bahia, quando Zé Sereno recebeu uma carta do governo dizendo que o Getúlio Vargas ia dar ordem de anistia. Sem prisão nem nada, a gente ia ser livre. Chegamos em Salvador e aí nos separaram. Ficou eu, Dulce e uma outra que nunca mais vi, a Dinda, todas presas. 

Na foto, da esquerda pra direita: Dulce, Dona Dil (sobrinha) e Cicera ( irmã de Dulce), faleceu este ano com 102 anos de vida. Dulce reside em Paulo Afonso. - Foto do acervo do escritor João de Sousa Lima

Dulce dizia: "Mana, o que é que nós vamos fazer?" Aí, nós choramos, as três. Num lugar estranho, meu Deus. Cadê eles? Ninguém sabia... No outro dia cedinho, Zé chegou para nos pegar e nos levaram para um quartel. Todo dia tinha uma chamada e a gente ia lá se apresentar. Ficamos lá até quando o Getúlio mandou a anistia.

Tpm - Quando a senhora chegou em São Paulo, as pessoas sabiam quem era? 
Sila - No trabalho, eu não contava não. Mas sempre acabavam descobrindo. A pior coisa que tinha era quando as crianças diziam: "Mãe, fulano disse que não quer brincar comigo, que sou filho de bandido". É duro, né? Eu dizia: "Vocês não são filhos de bandido, meus filhos, vocês são filhos de gente. Seu pai é Zé Sereno e eu sou sua mãe, somos gente que nem eles. Um dia vocês vão entender".

Tpm - Dá para comparar a violência de hoje, em São Paulo, com a que tinha no cangaço?

Sila - Já fui assaltada várias vezes. Aqui em São Paulo a gente não vive mais de tanto medo. Sai de casa e tem que ficar olhando para os lados, segurando a bolsa com força. Nunca apontaram uma arma para mim, mas já puxaram e levaram minha bolsa. Uma vez, saí correndo atrás de um trombadinha, catei ele pelo braço e fiz ele devolver a carteira. É diferente do cangaço... No mato, era a polícia que corria atrás, só tínhamos que ficar fugindo e fugindo. Roubava só fazendeiro que não dava o dinheiro por bem. Não tinha esse negócio de ladrão entrar na casa da gente sem ser convidado...

Tpm - A senhora tem saudade do Nordeste?

Sila - Ah... Se alguém me der uma passagem de volta, vou embora daqui...

Tpm - E com seu marido? A senhora não o namorava?

Sila -Ah, eu nem olhava pra cara dele, né? Um homem não via nem uma calcinha da sua mulher, não falava palavra feia perto da gente. Eu não sabia o que era namoro... Vou te dizer: eu nunca beijei, não sabia... Nossa vida era só andar, andar, andar, e pronto.

Tpm - Como foi a sua primeira noite com ele? 

Sila - Sabe como é... À noite foi aquela bagunça, cada um se encostou num canto. Zé tirou a alpercata dele e mandou eu calçar. Quando eu calcei, ele disse: "agora nunca mais você vai me deixar". De fato, nunca deixei mesmo. Acho que era uma simpatia porque eles acreditavam muito em reza, em oração, em tudo eles acreditavam.

Tpm - Então ele não foi nada carinhoso com a senhora...

Sila - Que carinho nada! Não tinha carinho nenhum! [Contrariada.] Ele nunca me beijou.

Tpm - A senhora já foi traída pelo seu marido?

Sila - Aaaaave-maria... Eu não sei como ainda tenho cabelo, viu?

http://lampiãoaceso.blogspot.com

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