Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Não bastassem
as tantas vezes que o sertão se vê tomado de tristezas e sofrimentos por causa
das longas secas e desolações, quando tudo parece que vai definhar e morrer,
outros elementos assombrosos se assomam para aumentar a dor e o tormento. E as
noites, que deveriam ser cantadas debaixo da lua, se tornam em sombras
arrepiantes e entristecedoras.
Não há lua
bonita que não entristeça com o piado agourento rondando a pobre moradia; não
há cantiga noturna que faça espantar o temor quando se ouve a coruja rasgando
mortalha nos escondidos dos arredores; não há noite iluminada que não estremeça
quando o miado do gato vem acompanhado de um lúgubre padecimento. Tudo fica tão
triste quando o mau presságio chega nas asas agourentas da escuridão.
Quem dera que
tudo ficasse apenas naquelas velhas estórias, nos mitos de gerações, acerca de
mulas sem cabeças, lobisomens, fogo-corredor, seres encantados povoando as
matas e tantos outros mistérios que ainda povoam o imaginário matuto. Mas não.
O que se tem - e como realidade - são outras aparições de vida e de morte.
Desde o urubu debaixo do sol ao pássaro noturno que vem buscar uma alma.
E não é
conversa pra boi dormir porque os fatos não deixam mentir. No alto da cumeeira,
nos escondidos do telhado, nos tocos escuros dos paus, por entre as sombras dos
arvoredos e tufos de mataria, sejam ocultos ou não, lá estarão os bichos que
atazanam, amedrontam, arrepiam os sertanejos. E fazem muito pior com os
indefesos e fraquejantes animais que se tornam vítimas das intempéries ou de
seus bicos afiados.
A verdade é
que é um misto de crendice e inventividade que vai se confluindo em inegável
realidade. Mesmo que a crendice não se fundamente, a mesma continua existindo
como verdade pelo simples fato da crença. E assim acontece com os bichos
agourentos, os animais carnicentos, com todos aqueles cujos gestos ou atitudes
tornam a realidade sertaneja mais assombrosa e apavorante.
Por ali,
naquele mundão de tanta gente de fé, ainda se acredita nos maus prenúncios
trazidos pelos pios, uivos ou sons agourentos; ainda se vê com temerosidade o
gato preto cruzando a estrada, o pássaro preto pousando na janela, o estranho
miado do gato com seu pelo eriçado; o urubu soturno que parece querer fazer
moradia em cima do pé de pau mais adiante. Para quem não entra nem sai de casa
com o pé esquerdo, avistar o bicho agourento é ter a certeza que o pior vai
acontecer.
Cavalo que
relincha na estrada e não quer seguir adiante é porque avista coisa ruim;
cachorro de latido constante é porque está vendo coisa estranha, alma penada,
coisa do outro mundo; nenhuma esperança boa chega parecendo um vara-pau; o
gemido triste vindo da mata é sinal que alguma coisa ruim logo irá acontecer. E
logo as mãos se unem em oração, o caboclo se benze dos pés à cabeça, a vela é
acesa, e a voz temente não se cansa de dizer: Deus é mais!
Mas nada pior
e mais assustador, verdadeiro fim de mundo em muitos lugares do sertão, que o
som funesto e aterrador da rasga-mortalha, que é a própria coruja encomendando
a vestimenta de defunto; o silêncio sangrento do morcego pendurado no alto da
casa; o anum anunciando a morte; a maldição trazida pelo negrume do urubu; o
gavião amaldiçoando o fraquejante. Não só noturnamente, pois pelo dia os
acontecimentos funestos se espalham por todo canto.
Verdade é que
nada continua o mesmo se de repente surgir o ruído medonho de uma ave aziaga. E
se a própria aparecer então, será um verdadeiro fim de mundo, pois a morte
certa ronda a paz do lugar. Uma velha senhora chorou por três dias e três
noites por causa de uma coruja que resolveu pousar num tronco de pau diante de
sua casa. Toda vez que botava o olho na janela, avistava a agourenta com aquele
olhar fixo naquela direção. Eis que a velha acabou morrendo de tristeza antes
de ver que a danada já tinha voado pra outro lugar.
Mas nem só de
agouros e assombrações ressente-se o sertanejo. Também fica sem acreditar com o
que enxerga pelos descampados e mataria ao redor, por todo lugar e
principalmente em épocas de estiagens inclementes. O tempo assim, triste pela
própria feição da natureza, é o mais propício para que os bichos maldosos e
carnicentos se aproveitem da fraqueza de outros bichos.
O carcará não
pode ver um cabrito magricela que logo faz um rasante em direção aos olhos.
Fura logo os dois, deixa o bichinho sangrando na escuridão da morte. E a
cegueira o faz prostrar para a chegada dos carnicentos. Os urubus, antes mesmo
da fetidez do corpo morto, parecem adivinhar o sinistro. Começam a rondar pelo
ar e não demoram muito para estar por cima do pobre animal com sua putrefata
gulodice.
Mas não estará
só, pois por ali também o gavião e outros aproveitadores de carne morta. Se já
estivesse enterrada então era prato cheio para o tatu e o peba, que fuçam
distâncias de terra só pelo prazer de saborear defuntos. Dizem que suas
couraças são guaridas diurnas para os que não alcançaram a salvação. E saem à
noite para as assombrações.
Não acredito.
Mas Deus me livre de não acreditar.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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