Por: Jair Eloi de Souza
Os caboclos já
madornavam, noite chuviscada, veredas entrançadas de cipós e feijão-brabo. As
macambiras nas empenas da serra talhavam os pés semi-protegidos com alpercatas
abertas e já gastas, grilos faziam uma sinfonia descompassada, porém, efusiva
que de certa forma protegia aquele vivente do cinzento que se destinava a mais
uma visita a sua confidente, a vidente do Umã. Era quarto minguante, o sinistro
estava presente no canto lastimoso da “Mãe da Lua”[1] solitária, espojada nas
galhadas na burra leiteira. Virgulino Lampião tinha lá suas confidências,
quando os sonhos pesadelos lhes roubavam o sono, e no arredar da luz do dia e
dos fogos com os macacos, acorria até a casa da cabocla, que via o passado nos
labirintos do pensamento e antevia o futuro invisível nas dobras do tempo
vincendo, era, pois, uma espécie de telepata.
A Serra do Umã tinha suas histórias de bravuras, de caboclos que traziam na sua
ancestralidade a figura do temido bacamarteiro e chefe do clã, o mítico Miguel
dos Anjos. Lampião admirava os dotes de robustez e valentia daqueles caboclos
que faziam a vida na cumeeira e abas daquela serra. Grassava a última lua do
mês das cobras, pois era vinte e seis de agosto do ano de l926. Saía de refrega
no lugar chamado Favela, onde destroçara volante comandada pelo anspeçada[2]
Mané Neto, e chegara à vez de visitar quem lhe dava resposta a sua mente
atanazada pelos últimos acontecimentos: Como as persigas mais constantes, o
despacho de macacos para o Pajeú, Caatinga do navio, Moxotó e a arregimentação
de cachimbos[3], tornando os cabras de Nazaré, numerosos e mais afoitos, pois,
já não cuidavam mais de suas terras, tornaram-se espécie de mercenários do
cinzento, com um agravante, além de receberem soldo do Governo, na infância e
adolescência criaram-se com os ferreiras, tinham os mesmos dotes, que
facilitavam o permeio na caatinga, o que nunca deixou de ser temido por
Lampião, daí, se valer da cabocla puxada na cor, de idade meã, olhar prudente e
macerado pelo tempo e precisão, adereçada por xale fubento de tanta lavagem, a
mítica Vidente de Umã, seu confessionário naquele mundaréu cinzento.
Morava a Vidente de Umã em casebre de taipa, troncho no oitão esquerdo, que se
fazia de pé por milagre ou graças a duas estroncas de pau-d`arco. O adereço da
cozinha um fogão de trempe, que tinturava a parede de pucumã. Na sala da
frente, a presença dos registros de papel, sem qualquer moldura, mas com
certeza benzidos pelo Padim Cícero, onde se via Santa Luzia, Nossa Senhora da
Conceição. Na camarinha junto à parede, a zidora[4] com esteira feita de
bananeiras, um cafiote de couro cru. A aproximação do visitante ilustre foi
denotada pelo vira-lata que latiu. Virgulino naquelas horas tinha que adiantar
o prefixo: Ôh de casa! Naquela negritude dos tempos, uma voz feminina arrastada
responde: ôh de fora! Quem é? É Virgulino Lampião, Louvado seja Nosso Senhor
Jesus Cristo, é de paz. Para sempre seja o Senhor louvado, em tênue bocejo
respondera a mítica cabocla. A porta se abriu e fechou.
Era a quarta vez, em visita extraordinária, que Virgulino entrava naquela choça
para consultar a vidente. A primeira em novembro em plena seca de l919. A
segunda no principiar do ano de l925. A terceira em dias de janeiro de l926.
Era também costume todo começo de mês quando estava em refrigério visitá-la
ocultamente. Segundo Frederico Bezerra Maciel, reproduzindo diálogo do Padre
José Kehrle com Lampião, este levava a sério essa visita, tanto era assim que
provocado pelo vigário deixou essa relíquia: “Padre Kehrle: Porque você nunca
caiu em emboscada?” “Porque teu u`a mulher em Umã que devinha tudo a respeito
de mim” respondeu Virgulino. Padre Kehrle: “É feiticeira?” “não Senhor. Ela tem
devoção às almas”. “Duas noites antes de findar o mês, sonha tudo que vai me
acontecer”. Essa é minha protetora aqui na terra.
Na primeira visita a Vidente em novembro de 1919, apareceram duas bandeiras
separadas, logo em seguida morreram seus pais. Na segunda em l925, foi a vez do
seu irmão Livino. Em l926, aparecem as bandeiras de números 4 e 5,. Logo no
comecinho do ano, morrera sua Irmã Angélica em janeiro e no seu final em
dezembro, era vez do seu irmão Antônio, o mais velho e seu lugar tenente mais
graduado, cuja função, era atuar na retaguarda, principalmente quando o palco
de luta era um desfiladeiro ou em boqueirão de Serra, utilizando o famoso laço
húngaro, tão executado pelos que fizeram a travessia nacional nas hostes da
coluna Prestes.
Convém admitir que essa cabocla tenha morrido sem percepção de ter sido talvez,
mais determinante na vida de Lampião que qualquer outra mulher, incluindo-se aí
a própria Maria Bonita, que embora tenha estabelecido no âmbito do bando, a
tenda do cupido em coitos remotos, não prenunciou a morte de Lampião, como o
fez a Vidente, pois, pouco tempo do epílogo da saga lampiônica, dissera ao Rei
do Cangaço, quando provocada pela indagação, o que veria ser “uma cobra bem
comprida vomitando fogo”? A Cabocla telepata dissera: “A serpente comprida
seria a estrada, o progresso, o caminhão a levar gente do Governo a sua
persiga. O fogo que vomita é a costureira,[5] que vai dar cabo de sua vida”.
Essa interpretação mística e mítica de que Lampião tinha o “corpo fechado pra
bala, era máxima popular não só nos Sertões do Seridó, como em todo o Nordeste,
inclusive atribuía-se a Padim Cícero Romão ser o grande protetor de Lampião. No
entanto, não é mistério, Lampião no seu último estágio, que foi o Cangaço-meio,
era um facínora muito bem informado, montara rede de positivos, coiteiros, cuja
mantença financeira, comprometia setenta por cento de sua rapinagem, além dos
seus dotes de maior guerrilheiro do Cinzento, quando sendo sabedor das
existências dos pequenos choradores ou finas veias de cacimba, fazia do Raso da
Catarina, um dos maiores desertos do Mundo, seu habitat natural, pra não dizer
um baita refrigério, com direito a toque de concertina, em xote gineteado ou
xaxado parraxado, o parraxaxá daqueles bandoleiros nômades do cinzento nas
terras nordestinas.
Nota do autor: Fragmento da obra Lampião o lobo do Cinzento."
Enviado pelo professor e pesquisador Francisco Borges de Araújo - Jardim de Piranhas
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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