Seguidores

sábado, 30 de agosto de 2014

O AMIGO DA TERRA

Por Rangel Alves da Costa*

O verdadeiro sertanejo sequer gosta de se afastar de sua casa, de seus arredores. A vida na cidade lhe parece estranha, insuportável, aterradora. Por isso não vê a hora de terminar suas compras, enganar o aió e embornal e pegar a estrada. Vereda espinhenta que o levará ao paraíso.

Dinheiro pouco, contado, comprou quase nada. Um pedaço de fumo, bala doce pra meninada, um corte de chita pra mulher, uma garrafa de pinga e as encomendas da cozinha sertaneja. Pouca coisa também, apenas um tico disso e daquilo. Arroz, farinha, açúcar, café, sabão em pedra, sal, colorau e tempero. E também um quilo de carne com osso, um quilo de bucho e outro de tripa.

Sabe que é pouco pra tanta boca, mas também sabe que fome de entristecer ninguém passa. Verdade que não há mais caça como antigamente, sequer o preá e a nambu são avistados pelas matarias. O jeito que tem é de vez em quando puxar no cangote de uma galinha e botar na panela. Galinha sempre gorda, criada ciscando à solta, é garantia de comida na mesa por dois dias.

A secura do lugar onde mora não permite a criação de porco, pois o bicho não ia engordar sem resto de comida, água pra se lambuzar e lama pra focinhar, mas possui quatro ou cinco cabeças de bode. Matar pra consumo próprio de jeito nenhum. A esperança é que ganhem uns quilinhos a mais para serem vendidos. Mas dinheiro pouco entra no bolso e sai pela mão.

Não vive contente com a pobreza, logicamente que não. Mas olha ao redor e avista situação muito pior, coisa de cortar coração. Nunca há fartura no prato, mas também não amarga o sofrimento de ter filho chorando de fome. E choro assim é ouvido de palmo a palmo, de lado a outro no seu sertão.


Pelas vizinhanças barriga cheia só do barro escavado da tapera, panelas e pratos vazios e olhares chorosos e entristecidos. Menino correndo atrás de calango para atirar na brasa e saborear, pai de família em tempo de endoidar. Sabugo de mandacaru novo até que é não é ruim, mas tudo seco, esturricado de vez.

Tudo isso acontecendo ao redor. E bem que podia ser com sua família. Dá uma vontade danada de chorar, e chora mesmo. Só que transfere as lágrimas e o sofrimento para o velho berrante. É assim que ao entardecer o berrante ecoa por aquelas paragens, chorando pelos seus irmãos de chão.

Tudo faz para mostrar força diante de tudo. Mas sofre na vida, sofre quando avista a terra seca e sem nenhum pé de pau verdejante, sofre quando a nuvem de chuva vai se dissipando ainda ao longe. O mesmo sofrimento de todos ao redor, a mesma dor suportada por todos.

Mas não arreda pé dali de jeito nenhum. Ali nasceu e ali há de morrer. Ali sua existência, sua razão de lutar pela vida, sua esperança sempre renovada na fé. A mulher se ajoelha perante o oratório, ele retira o chapéu do lado de fora, olha para o céu sertanejo e conversa com Deus: Olhai pra esse povo pobre do sertão, meu Senhor Jesus Cristo. Com as forças de Deus e do Frei Damião e do Santo Padim Padim Ciço, tudo ai de melhorar. E vai!

Não é outro senão a própria terra. Terra e homem se misturam num só, numa entranha inseparável. Ele o grão, a semente, a esperança de fruto que precisa enraizar. Ela o leito que acolhe, que mesmo esturricada cativa e afaga o seu filho. Homem cheirando a terra, terra com feição de sertanejo. E nada sobrevive quando lhe retira o coração.

Por isso mesmo que é tão amigo da terra, tão dependente dela pra tudo. Descalço caminha pela sua secura e sente a carícia do espinho, eis que as flores já estão diante do seu olhar. Tudo seco, fumaçando, mas é como se toda vastidão sertaneja fosse um jardim. E ele o jardineiro prometendo à planta morta que amanhã tudo será diferente. Tudo será melhor.

Amanhã talvez não. Mas um dia será. Com fé em Deus, em Frei Damião e no Santo Padim Padim Ciço.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário