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domingo, 14 de setembro de 2014

CHUVAS E SAUDADES

 Por Rangel Alves da Costa*

Ontem, sábado, treze de setembro, começou serenando em Aracaju. Depois o sol apareceu, as nuvens novamente tomaram os espaços e a chuvarada incessante resolveu cair do início da tarde em diante. Não uma chuva forte, de trovoada ou pingos grossos, mas numa constância que se derramava farta pelas biqueiras.

Já ao entardecer, sem comércio aberto ou veículos velozes tomando as ruas, o asfalto se deixava molhar, se lavar e escorrer sem pressa. Poucas pessoas passando com seus guarda-chuvas, mais apressadas para chegar aos destinos do que mesmo fugir da molhação. Conheço alguém que chega a usar guarda-sol em dias mais ensolarados, mas se nega a usar guarda-chuva ainda que debaixo de temporal. O motivo: reencontro com a infância.

Neste sentido, diz que basta sentir a chuva caindo e molhando tudo para recordar sua meninice, suas brincadeiras e correrias debaixo das chuvaradas de antigamente. Num tempo de ruas sem asfalto ou pedras cimentadas, com o chão duro ou no barro se fazendo de rua e caminho, bastava cair pingo d’água e os lamaçais e as poças iam se formando por tudo que era canto. Então o menino nu, contagiado pelo aguaceiro, passava correndo por cima de tudo em busca das biqueiras grandes para a grande festa da idade.

Eu também já fui menino nu sertanejo, traquina que só o cavalo da ema, correndo festeiro pelas ruas molhadas do meu lugar. Bastava encontrar uma calçada de cimento liso e me jogava de barriga até rolar por cima da água ao final do percurso. E repetia sempre. E depois brincava de laçar pingo, de peneirar gota d’água, de espanar com as mãos o gotejamento que ia caindo. E de repente já estava correndo na direção do riachinho para ver se ouvia o barulho da cheia despontando lá em cima. Mas ela costumava chegar pela madrugada.


Toda uma geração sertaneja teve uma meninice assim como a minha, desandando pelo mundo logo que toró sem relâmpago e trovão começasse a cair. Correndo, pulando, festejando aquilo que era tão difícil acontecer na secura sertaneja. E assim nessa euforia toda até ouvir um grito de alguém dizendo que um pai ou uma mãe estava procurando o danado do filho com um chicote à mão. E o traquina, que podia ser qualquer um de nós, corria, entrava às escondidas pelo quintal e mansamente ia se entocar debaixo da cama, ainda molhado.

Neste sábado, com os pingos caindo, eis que me vi recordando tudo isso. No silêncio entristecido da tarde e nas sombras molhadas da noite, quanto mais chovia lá fora mais eu me distanciava em pensamentos. E mais ainda quando avistei no quintal um cano descendo do telhado e jorrando igual biqueira grande. Juro que por uns cinco minutos fiquei apenas olhando aquilo que me surgia como fotografia antiga. E por mais uns cinco minutos fiquei na dúvida se ia tomar banho ali debaixo ou não. E de roupa e tudo.

Pensei e pensei, cheguei a tirar a camisa disposto e caminhar até lá. Mas depois resolvi que não tinha graça tomar banho ali sem camisa, vez que só teria proveito se fosse com roupa e tudo. Sim, com roupa e tudo, deixando tudo molhar, tudo inundar, encharcar e escorrer sem medo de gripe ou de nada. Adulto não tem graça nenhuma tomar banho de chuva desnudo, ainda que nos escondidos do seu quintal. A magia toda está se deixar molhar com roupa e tudo, numa atitude de desprendimento com a realidade e as etiquetas da vida.

Aliás, não há coisa melhor que fazer como aquele amigo que abdica do guarda-chuva para sair debaixo de chuvarada. Sei que poucos comungam da ideia, mas vejo como totalmente descabido que alguém procure tanto se proteger da chuva quando está no seu cotidiano mais comum da vida, sem roupa de compromisso ou por exigência profissional. Assim como as ruas lavadas se renovam, parecem espelhadas pela molhação, também o ser humano necessita de uma enxurrada de vez em quando.

Hoje, domingo, como diz a moça do tempo, está no nublado, com chuvas no decorrer do período. Já choveu e já parou, mas na iminência de muito mais. Mas espero que chova muito, bem forte. Preciso ir ao mercado, mas só irei debaixo de toró, sem guarda-chuva. E no retorno vestirei uma roupa enxuta para a biqueira que tanto me chama a relembrar os bons tempos da vida.

Poeta e cronista

blograngel-sertao.blogspot.com 

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