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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

BICHO DE CANGA

Por Rangel Alves da Costa*

A maioria das pessoas talvez não conheça o que seja canga nem qual a sua serventia. Antecipo afirmando que é um instrumento de madeira colocado no pescoço dos animais para que não fujam ao comando do condutor. E também para que uma dupla de bois siga na mesma direção. Também conhecida por jugo ou junta de bois, era muito utilizado nos animais puxando carro-de-bois e também noutros pescoços de bichos arredios.

Conceitualmente, canga é uma peça de madeira encurvada, simples ou dupla, que se coloca no pescoço ou cachaço dos animais de carga. É o instrumento utilizado para unir dois bois, para que andem no mesmo compasso enquanto puxam um arado ou uma carroça. A madeira é talhada de modo a ser ajustar aos pescoços ou perfurada no molde destes. Neste último caso, a madeira se abre ao meio e novamente é unida quando os pescoços estão presos.

Após a colocação da canga, o carreiro sobe no carro de madeira rangente e passa a comandar, com berros e chicotadas, os bois submissos. Além do chicote de couro cru geralmente leva à mão uma vara com ponta de metal afiado para espetar o lombo dos bichos, ainda que estes estejam se esforçando ao máximo para carregar tanto peso. Desse modo, a canga, muito mais que um instrumento para juntar os animais na mesma direção, é utilizado para deixá-los em posição de submissão, de verdadeiro jugo, em posição ideal para serem açoitados e feridos pelos seus algozes.

Mas nem só os animais eram submetidos à canga, ao jugo pesado sob o pescoço, pois também o bicho humano já foi atormentado pela sua ira. Até hoje os desenhos de Debret e outras ilustrações acerca da escravidão mostram os negros fugidios acorrentados e sendo puxados a partir de uma madeira envolvendo seus pescoços. Avistam-se as cangas como instrumentos de escravização, de sujeição e tortura.

Também noutros tempos, muitos condenados à morte por decapitação eram colocados em cangas à espera que sobre suas cabeças descesse a lâmina cortante. As cenas terríveis sempre mostrando mãos presas à madeira, os corpos de um lado e a cabeça de outro, e apenas a canga dividido a vida da morte. E num simples gesto do opressor, então o algoz descia a lâmina e fazia a cabeça cair ao chão.


No Nordeste brasileiro, o surgimento de grupos de bandoleiros das caatingas fez surgir o termo cangaço, como forma de denominar aqueles que enveredavam nas hostes da bandidagem por viverem sob a canga do Estado, do mando e da opressão. Neste sentido, a canga era o peso suportado pelo homem da terra escravizado, perseguido, injustiçado. E canga também o fardo que suportavam no meio tão hostil, empobrecido e entremeado de angústias e sofrimentos. Daí o termo cangaço.


Contudo, cangaço também remete a frangalho, a resto, a maltrapilho, a uma situação de penúria. Quando o ser está irreconhecível nas suas forças, diz-se que dele restou apenas o cangaço; quando mais parece um errante rasgado e imundo, jogado à desdita da vida, afirma-se que está um cangaço. De qualquer modo, sempre deixa subentender uma situação de pobreza, sofrimento, desvalia.

Assim, a canga serve para exemplificar, a um só tempo, a obediência forçada do bicho de carga, a escravização degradante e abjeta, o limite da vida e da morte, uma situação de dor e suplício. E em tudo o sofrimento silencioso, a sujeição sem revide, a condenação sem chance de qualquer apelo. Sob a canga ou envolvido pela sua madeira, o pescoço encurvado significa o ser se exaurindo e já sem forças para reagir. Mas, no caso dos escravos e bichos, estes tinham de tudo suportar e seguir em frente, sentindo ainda o chicote no lombo ou a espetada do ferrão nas costelas.

Será que o homem moderno se envergonhou da canga e a relembra agora como um degradante objeto de mortificação e tortura? Seria idílico imaginar o homem como aquele que reconhece seus erros e procura se redimir das atrocidades cometidas. O mundo é outro, a realidade possui feições bem diferenciadas de outros tempos, mas muita canga ainda continua sendo colocada em pescoços.

Mas nem só em pescoços a canga é colocada. Toda vez que a riqueza submete a pobreza, escravizando-a, utilizando-a para fins escusos está colocando a canga. Toda vez que o Estado deixa o ser humano impotente diante de suas garantias fundamentais, está colocando canga nas classes carentes. Toda vez que o autoritarismo se impõe para calar a voz do cidadão, para negar seus direitos e conduzir como bem desejar a vida da sociedade, está usando a canga.

A pobreza vive com a canga ao pescoço, no estômago, aos pés. Vivem carregando canga todos aqueles que necessitam de atendimento público de saúde, que procuram os órgãos públicos para cumprir exigências, que precisam adquirir alimentos e outros meios de sobrevivência. E que canga pesada diante da insegurança. A canga moderna é, assim, toda essa impotência que submete e desonra o ser humano, principalmente aquele que, pela situação de pobreza, já vive na forca. 

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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