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segunda-feira, 23 de março de 2015

A GUERRA QUE QUASE HOUVE

Por Tomislav R. Femenick

Dois fatos relativamente recentes voltam a suscitar a controversa que ainda existe com relação à fixação da divisa do Rio Grande do Norte com o Ceará. Desde 2009 tramita na Assembleia Legislativa do estado vizinho um projeto de Decreto Legislativo, que dispõe sobre a convocação de plebiscitos para decidir sobre os limites territoriais interestaduais. Em 14 de abril de 2011, o Diário Oficial do Estado do Ceará publicou ato daquela casa que criava uma Comissão Especial para diagnosticar a indefinição de divisas do Ceará com o Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba. Por trás dessa nova disputa estaria a disputa pelos royalties do petróleo que a Petrobras descobriu na divisa das cidades de Tabuleiro do Norte (CE) e Apodi (RN).
            
No ano passado o engenheiro Jorge Cintra, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, utilizado técnicas e instrumentos de medição modernos que proporcionam maior rigor de resultados, elaborou um novo mapa das Capitanias Hereditárias (terra doadas no século XVI pela Coroa Portuguesa a comerciantes e nobres lusitanos) que contradiz o mapa tradicional, de autoria do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen. Esse novo estudo, confirma a posição do Rio Grande do Norte na questão dos limites, baseados na prelazia histórica.


Essa é uma questão antiga e que, na opinião do historiador Saul Estevam Fernandes, teria sido a causa principal que motivou a criação dos Institutos Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte e do Ceará.

UMA QUESTÃO DE SAL

O monopólio do sal, instituído pela coroa portuguesa permitia que apenas as províncias de São Tomé, Rio Grande e Pernambuco produzissem e comercializassem sal brasileiro, desde que em suas respectivas fronteiras. Em meados do século XVIII a Vila de Aracati era uma grande produtora de carne salgada e usava sal trazido de Portugal, que era gravado com altos impostos. Visando solucionar seu problema, Aracati solicitou a anexação das salinas do Rio Mossoró ao seu território, o que foi concedido por uma Carta Regia de 1793. Em 1801 o governo cearense como ponto de referência do limite a margem esquerda do rio Mossoró, o que provocou protestos do governo da província do Rio Grande do Norte. A questão perdurou mesmo após a independência e durante todo o período do Império.

Em meados do século XIX, o desenvolvimento de Santa Luzia de Mossoró atraía mais e mais pessoas para a cidade e reavivou o clima de disputa fronteiriço com o Ceará. Caso típico foi a disputa em que a cidade se viu envolvida em torno das oficinas de carne-seca, quando alguns comerciantes de Aracati quiseram fechar os portos dos rios Assú e Mossoró, visando impedir a saída do produto. Sem mercado, as oficinas seriam fechadas. A situação se adensou, em 1888, quando a Câmara daquela cidade cearense “mandou medir terrenos à margem esquerda do Mossoró” e tentou estender os limites de seu Município, absorvendo terras das localidades de Tibau e Grossos. Depois de marchas e contra marchas, um ouvidor substituto mandou dar posse dos terrenos em litígio à vila de Aracati, mas o território limítrofe continuou sem ser demarcado.

Mapa de 1848

Em 1894, o Estado do Ceará impetrou uma ação no Supremo Tribunal, alegando “conflito de jurisdição”, que se transformou em “ação de limites”. Mesmo com a situação sub judice, isto é, em trâmite judicial, em 1901, a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou, e o Presidente provincial sancionou uma Lei elevando Grossos à condição de Vila. O governador potiguar protestou. Os norte-rio-grandenses, que moravam na área disputada, reagiram, e os governos dos dois Estados mandaram tropas para o local. Entretanto, não houve conflito armado.

CONFLITO QUE QUASE HOUVE

A fronteira entre os dois Estados era marcada pela barra do rio Mossoró, e ali se posicionaram tropas do Rio Grande do Norte, em fins de janeiro de 1904. Os cearenses reagiram, trocando sua posição de invasores para invadidos. “Multidões se reuniam na praça Central de Fortaleza exigindo a guerra ao Rio Grande do Norte”. O governo do Ceará nomeou um Tenente-coronel do Exército, Salustiano Padilha, para expulsar as tropas potiguares. Em cinco de março de 1904, a tropa cearense, composta de duzentos e cinquenta homens, tomou posição em Aracati, a somente oitenta quilômetros da zona disputada.

 
A região reivindicada pelo Ceará

José Torcápio Salustiano de Albuquerque Padilha nasceu em Camocim, no dia sete de setembro de 1861. Ele foi criado por um tio, que tinha sido voluntário da pátria na guerra do Paraguai e que lhe incutiu um grande sentimento de xenofobia. Em 1883, formou-se aspirante pela Escola Militar de Rio Pardo. Quando dos problemas fronteiriços do Brasil com a Bolívia por causa da questão do Acre, ele externou o desejo de “oferecer sua vida em holocausto pela pátria”. O tratado de Petrópolis de 1903, que resolveu as questões com a Bolívia, frustrou seus sonhos de glória nos campos de batalha. Decepcionado, voltou para o Ceará. Agora, ele tinha um outro inimigo, os norte-rio-grandenses; tinha a sua guerra, a região contestada entre o Rio Grande do Norte e o Ceará.

Os cearenses se deslocaram de Aracati até Grossos, aonde chegaram em 11 de março de 1904 e ali estabeleceram seu quartel-general, porém não encontraram as forças potiguares, que tinham feito um recuo tático, cruzando a barra do rio Mossoró, para se reagruparem em Areia Branca. O comandante da expedição planejou atravessar de barcos a barra do rio e invadir a cidade de Areia Branca. Entretanto, alguns dos seus oficiais se anteciparam; cruzaram o rio, se entenderam com as tropas opostas e telegrafaram ao Presidente da Província do Ceará, recebendo deste a ordem para evitar a invasão do Rio Grande do Norte (que eles já haviam invadido quando entraram em Grossos).

Todavia, o Tenente-coronel Salustiano se negou a cumprir a ordem do seu governador e, às sete horas do dia 12 de março de 1904, com apenas poucos homens, fez a travessia do rio e ficou esperando pelo outros, que nunca chegaram. Sem apoio, teve que se retirar.

O Presidente da República interveio na questão e mandou que as tropas de ambos os lados recuassem para suas bases. A primeira tentativa de solução pacífica da disputa da região contestada pelo dois Estados deu-se via arbitragem, portanto sem envolvimento dos Tribunais regulares. A decisão foi favorável ao Ceará. Nos Tribunais, o Rio Grande do Norte ganhou em três ocasiões diferentes: 30 de setembro de 1908; 02 de janeiro de 1915 e 17 de julho de 1920.

Caso o Rio Grande do Norte tivesse perdido essa causa, na verdade quem sairia perdendo mais ainda seria o Município de Mossoró, pois grande parte de sua receita e da renda da população vinha daquela região, onde eram desenvolvidas as mais profícuas e proveitosas atividades econômicas locais: extração de sal, criação de gado, exploração agrícola e produção de carne de sol.

NOS ANOS 1960

O problema ainda teve um outro desdobramento. Quando Aluísio Alves era governador, o Estado do Rio Grande do Norte fez a doação de glebas de terras devolutas a antigos posseiros, muitos deles moradores em região fronteiriça com o Ceará, expedindo o competente documento de posse e editando ato que autorizava que os beneficiados pudessem contrair empréstimos com bancos oficiais, dando as referidas terras como garantia. Essa medida favoreceu os habitantes da região, dando-lhes possibilidades de melhorar seu nível de vida.

Em outubro de 1967, vários proprietários de terras de Baraúnas, então distrito do Município de Mossoró, foram vítimas de arbitrariedades por parte de supostos donos de suas terras. Entretanto, inesperadamente eles foram presos pela polícia cearense e levados para a cidade de Russas, onde um cidadão de nome José Louredo declarou-se dono de toda a área doada pelo Governo do Rio Grande do Norte, além do mais sob a alegação de que todas aquelas terras fazem parte do estado do Ceará.

Os proprietários se viram forçados a abandonar suas glebas e benfeitorias nelas existentes, depois de terem iniciado o beneficiamento e cultivo das terras doadas pelo Governo potiguar. Após esse incidente, numa zona supostamente contestada, pois oficialmente nada havia a respeito do assunto, os trabalhos agrícolas e pastoris da região foram paralisados, com grandes e sensíveis prejuízos para a economia local.

A CONSTITUIÇÃO

A Constituição Federal Brasileira de 1988, no art. 12, parágrafos 2º, 3º e 4º, de seus dispositivos transitórios, determina que em um prazo de três anos, contados a partir da data de sua promulgação, que os Estados e municípios promovessem a demarcação de suas linhas divisórias em litígio. Esgotado esse prazo, cabe à União determinar os limites das áreas litigiosas.

Como até agora o Rio Grande do Norte e o Ceará não resolveram definitivamente suas pendências de limites geográficos, o caso deve seguir o que estabelece a alínea “f” art., do art. 102 da nossa Carta Magna: “Compete ao STF […] as causa e os conflitos entre a União e os Estados, entre a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros…”.

Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em história e sociologia. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN

http://www.tomislav.com.br/a-guerra-que-quase-houve/

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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