Virgulino
Ferreira da Silva, ou Lampião, Rei do Cangaço, nasceu em 1898 em Vila Bela,
atual Serra Talhada, Pernambuco, e morreu na madrugada do dia 28 de julho de
1938, na fazenda conhecida como Angico, no município de Porto da Folha, em
Sergipe. Passou metade de seus 40 anos no comando de seu bando de cangaceiros,
com os quais percorreu os sertões de sete Estados: Bahia, Sergipe, Alagoas,
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, sendo os quatro primeiros
banhados pelo Rio São Francisco. Justiceiro e herói para alguns e bandido
sanguinário para outros, ele e sua companheira Maria Bonita constituem um mito
que beira o religioso e se confunde com a lenda em todo o nordeste brasileiro.
A saga desse
personagem polêmico da história brasileira é um dos episódios sociais mais
instigantes da América do Sul. Nas últimas décadas surgiram, no Brasil, várias
publicações de estudiosos do cangaço, que ora lhe dão uma aparência poética de
justiceiro, de vindicatório do povo, ora o destacam como facínora.
Segundo o
historiador Frederico Pernambucano de Melo, “Lampião era pai e marido
amoroso, e se deve a ele a introdução no cangaço do ofício religioso coletivo,
das mulheres em caráter permanente, da logística dos equipamentos e suprimentos
bélicos, da guerra psicológica”, e de muitas outras artimanhas necessárias para
a sobrevivência na caatinga. Grande dançarino, o cangaceiro organizava com os
seus coiteiros ao menos dois bailes semanais. O traje do cangaceiro
tinha apuro ornamental. Cheio de cores vivas e harmoniosas nos lenços bordados,
nos bornais e frisos das cartucheiras e nas perneiras. Também usavam muito
perfume e muitos anéis. O chapéu, em estilo napoleônico, era coroado de moedas
de ouro e prata.
Perseguidos
sem tréguas durante cerca de vinte anos pelas forças de ordem de sete Estados
do nordeste brasileiro, Lampião e seus comandados desbravaram e pilharam uma
das regiões mais pobres do Brasil: o Sertão. Desafiaram não apenas as
autoridades policiais e políticas do nordeste, mas, também, o poder central do
Brasil. Aqueles que poderiam ser personagens de pouca envergadura, cuja zona de
influência e cujo poder de novidade pareciam restritos a uma região miserável,
foram, em seu tempo, os reveladores das falhas de um sistema político,
econômico e social, da incapacidade do Brasil de forjar sua unidade, numa época
em que a sociedade se acreditava moderna, unificada e coerente.
Sob o comando
de Lampião – o "Senhor do Sertão" –, os cangaceiros assolaram a
região de 1922 a 1938. Traído por um de seus companheiros, apanhado numa
emboscada, Lampião, juntamente com sua mulher e nove de seus cangaceiros,
encontraram a morte no dia 28 de julho de 1938. Todos foram decapitados, e suas
cabeças transportadas de cidade em cidade e expostas em praças públicas, numa
cuidadosa encenação.
Mas a morte
desses homens, especialmente a de Lampião, foi contestada por boa parte da
população do sertão, que acreditava – ainda hoje acredita – na
invulnerabilidade de seus heróis. A poesia popular e as canções de gesta dos
trovadores do nordeste apossaram-se desses personagens, exaltando sua bravura,
seu destino trágico e seu senso de honra.
A Fotografia
no Cangaço
Fato
surpreendente para essa época, e em sua região onde a oralidade sempre
predominou sobre o visual, os cangaceiros, assim como seus perseguidores,
deixaram uma grande quantidade de documentos fotográficos, testemunhos
indiscutíveis de um dos episódios mais violentos da história brasileira.
Enquanto os predecessores ilustres de Lampião quase não deixaram registros,
Lampião, durante todo o período em que dirigiu o cangaço e reinou sobre o
sertão, fez questão de registrar, por meio de imagens fotográficas, alguns
momentos fortes de sua vida.
Sob as roupas
de Lampião, quando ele morreu, foi encontrada uma grande quantidade de
fotografias. Algumas representavam pessoas mais próximas, outras representavam
cangaceiros de seu grupo, mortos em combates precedentes; e, fato
surpreendente, uma delas representava João Bezerra, seu assassino, como se
Lampião tivesse carregado consigo o resumo de sua vida, desde sua juventude
antes de entrar no cangaço, até sua morte anunciada, como se tivesse feito de
seu corpo o suporte e o território de sua memória.
Em 1926, o
Ceará vivia um clima de violência e de agitação política, causado pela Coluna
Prestes. O Governo Federal apelou para os chefes políticos locais para defender
cada região ameaçada, e criou milícias denominadas Batalhões Patrióticos.
Aproveitando-se da notoriedade de Lampião, de seu conhecimento do terreno e da
organização quase militar de seu grupo, chamou-o e incorporou-o a um de seus
batalhões. As autoridades de Juazeiro prometeram-lhe a possibilidade de
inserção na sociedade, e ele chegou a receber o título de Capitão – o que,
evidentemente, não passava de uma mistificação. Nessa ocasião, ocorreu o
encontro decisivo entre Lampião e Padre Cícero.
No dia 4 de
Março de 1926, Lampião entrava em Juazeiro, impune, ovacionado como herói pela
população local, recebido pelos notáveis da cidade como personalidade
importante. Consta que mais de quatro mil pessoas teriam se deslocado para
aclamar Lampião e seus 49 cangaceiros que, ao passar, distribuíram moedas,
cartuchos e autógrafos à multidão, entoando “mulher rendeira”, seu hino de
guerra.
Lauro Cabral,
instalado em Barbalha, nas proximidades de Juazeiro, exercia a função de
agrimensor e, paralelamente, a atividade de fotógrafo. Quando foi informado da
chegada de Lampião e de seus homens à Barbalha, decidiu tirar fotografias
“sensacionais”. Lauro Cabral propôs a Lampião fotografá-lo com seu grupo, o que
muito surpreendeu o bandido. Ele insistiu, explicando-lhe que faria dele um
homem célebre, distribuindo suas fotografias à imprensa de todo o Brasil.
As fotografias
tiradas em Juazeiro são extremamente variadas. Algumas representam Lampião ao
lado de seus irmãos e irmãs, alguns dos quais viviam em Juazeiro. Outras
fotografias representam Lampião e seus cangaceiros em posição de combate
apontando a arma para um adversário imaginário. As fotografias mais notáveis
mostram Lampião trajando o uniforme dos Batalhões Patrióticos, porém usando o
famoso lenço preso por um anel, o punhal e a bolsa bandoleira, que lembram que
ele pertencia ao cangaço.
A estada de
Lampião em Juazeiro, Ceará, em 1926, foi organizada pelo libanês Benjamin
Abrahão.
A partir nos
anos 1920, Benjamin se instalou, como comerciante, em Juazeiro, Ceará, e logo
em seguida, tornou-se secretário particular de Padre Cícero. Foi coordenador de
diversas audiências que o Rei do Cangaço concedeu a notáveis e personalidades
da cidade, permitiu ao jornalista Otacílio Macedo entrevistar Lampião e organizou
as sessões de pose com os fotógrafos Pedro Maia e Lauro Cabral. Nasceu nessa
ocasião o projeto de fazer um filme documentário sobre Lampião.
A partir de
1934, Benjamin Abrahão exerce a função de coiteiro – fornecedor de
armas e víveres. Faz muitas vezes o trajeto até Recife, com altas somas
destinadas à compra de bebidas caras e munição e, em seguida, desaparece por um
tempo no sertão. Essas atividades permitiram-lhe entrar, rapidamente, em
contato com o grupo de Lampião e aprovisioná-lo. Tendo tecido laços de amizade
com Lampião em Juazeiro, em 1926, não foi difícil ganhar a confiança do
cangaceiro.
Após a morte
de Padre Cícero, em 1934, Benjamin, desejando filmar e fotografar Lampião,
aproxima-se de Ademar Albuquerque, negociante e proprietário da Abafilm –
sociedade de difusão de filmes e de venda de material fotográfico e
cinematográfico, instalada em Fortaleza. A sociedade Abafilm deveria ser
encarregada da difusão do filme consagrado a Lampião em todo o Brasil e no
exterior com o apoio da Zeiss – firma alemã de material fotográfico e óptico,
instalada no Brasil desde 1920.
Mas, foi
somente em 1936 que Benjamin Abrahão pôde concretizar seu desejo de filmar
Lampião, após conseguir entrar em contato com ele por intermédio de José Cassis
e outros coiteiros do grupo do cangaceiro. Esse filme em preto e
branco e em 35 mm foi rodado na caatinga, de junho a outubro de 1936. Os
cangaceiros foram filmados no ambiente em que viviam, em suma, em seu
território. Por diversas temporadas no sertão, o cineasta viveu com o grupo de
Lampião e filmou cenas da vida cotidiana destes.
O Diário de
Pernambuco de 27 de setembro de 1926 publicou, em primeira mão, o testemunho de
Benjamin Abrahão. Ele conta em que condições conseguiu encontrar Lampião, após
uma espera de dezoito meses percorrendo os sertões da Paraíba, Pernambuco,
Alagoas e da Bahia, vivendo na caatinga e enfrentando diversos perigos. Em seu
primeiro encontro, Lampião mostrou-se “homem de boas maneiras”, oferecendo-lhe
uma refeição e conhaque. No entanto, o célebre cangaceiro continuava
desconfiado, temendo uma armadilha ou uma traição.
Enquanto a
imprensa do sertão evitava publicar comentários sobre esse personagem, na
imprensa do litoral do nordeste e do sul do Brasil as reportagens sobre
Benjamin Abrahão sucederam-se por vários meses, incluindo inúmeras fotografias,
inicialmente acompanhadas de legendas curtas. Os primeiros artigos homenageavam
o cineasta, sua bravura, seu senso de risco, e as fotografias pareciam estar lá
para sustentar tais afirmações. Aos poucos, as legendas foram-se enriquecendo e
tornaram-se verdadeiros comentários.
Vale a pena
observar que Benjamin Abrahão fez questão de aparecer nessas fotografias em
companhia dos heróis de sua reportagem. Sua presença lá está como uma
assinatura, um certificado de autenticidade. A palavra pode ser posta em
dúvida, mas a imagem é incontestável.
No entanto,
como se a prova fotográfica não fosse suficiente, Benjamin Abrahão, por ocasião
do primeiro artigo do Diário de Pernambuco consagrado à sua reportagem, datando
de 27 de dezembro de 1936, declara possuir um certificado assinado por Lampião,
atestando a sua presença ao seu lado:
“Ilmo Sr,
Benjamin Abrahão
Saudações
Venho Ilhi
afirmar que foi a primeira peçoa que conciguiu
filmar eu com todos os meus peçoal cangaceiro, filmando
asim todos us muvimento da noça vida nas catingas dus
sertões nordistinos.
filmar eu com todos os meus peçoal cangaceiro, filmando
asim todos us muvimento da noça vida nas catingas dus
sertões nordistinos.
Outra peçoa
não conciguiu nem conciguirá nem mesmo eu
consintirei mais.
consintirei mais.
Sem mais do
amigo
Virgulino
Ferreira da Silva
Vulgo Capm Lampeão”
Vulgo Capm Lampeão”
O certo é que
o filme e as fotografias provocaram a irritação no Governo Federal e, em
particular, ao Departamento de Imprensa e Propaganda. Finalmente, após a dura
campanha do governo de Vargas contra seu filme, em pleno Estado Novo, e não podendo
mais receber a proteção dos coronéis, também fragilizados, Benjamin Abrahão foi
assassinado, em maio de 1938, em Águas Belas, atual Serra Talhada, em
Pernambuco.
Uma das muitas
explicações para o assassinato é que o cineasta, por intermédio de suas fotografias
e de seu filme, havia feito de Lampião um personagem importante demais. No
momento em que Getúlio Vargas exercia grande pressão sobre os chefes políticos
locais, e esforçava-se para reduzir-lhes os privilégios, esse filme, que muitas
vezes o comprometia, devia ser destruído. Era preciso, a qualquer preço,
suprimir as provas de ligação entre a vida opulenta levada pelo grupo de
cangaceiros e a corrupção dos poderes locais. Após a morte de Benjamin Abrahão,
os rolos do filme foram apreendidos. Enquanto isso, os órgãos de imprensa
apoderavam-se das fotografias, que passavam a representar provas incontestáveis
da invulnerabilidade de Lampião.
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