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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A VIDA DE JESUS (FILHO DE TOTONHA E BASTIÃO)

Por Rangel Alves da Costa*

Jesus dos Santos, eis o seu singelo nome de batismo. Era para ser maior, mas no cartório o pai do menino ouviu que tanto fazia filho de pobre ter nome completo ou não, com a junção do sobrenome do pai e da mãe, vez que a pobreza não precisa de muita pronúncia nem de muita escrita em documento. Jesus já estava bom demais para ser conhecido e chamado, e acrescentaria dos Santos apenas para que os pais tivessem a ilusão completa, foi o que afirmou o de gravatinha borboleta.

Era para ser Jesus da Cruz Santos, mas ficou apenas Jesus dos Santos por força das conveniências cartoriais e das explicações dadas pelo de cabelo passado à brilhantina. Assim o menino foi registrado. E talvez o destino, através daquelas linhas tortas que tanto se fala, acabaria colocando o Jesus numa estrada de sofrimento que sempre fazia lembrar os desertos percorridos, as incompreensões e as tentações na solidão sofridas por outro cristão de mesmo nome.

Jesus veio mundo em meio a mais absoluta pobreza. Seus pais, Sebastião e Antônia, devidamente apelidados de Bastião e Totonha, mesmo ainda jovens, pareciam dois velhos e alquebrados pelas desditas do tempo. Ela, mulher de tudo e nada fazer, pois não se negando a nenhum ofício que lhe chegasse como trabalho de ganha-pão. Mas sem nenhuma trouxa de roupa pra lavar nem um punhado de barro pra fazer panela, ou mesmo qualquer outra coisa pra debulhar ou limpar, seus dias se resumiam no desalento e desesperança. E numa tristeza danada pela sina do marido.

Aquela sina não era somente do marido Bastião, mas de todo homem que vivesse naquela região. Com mais de ano sem chuva, sem cair um pingo d’água sequer que desce esperança de molhação a terra, tudo se transformava num sofrimento sem fim. E sem chuva não havia nada que sustentasse a vida, que permitisse um tiquinho de qualquer coisa no prato de cada dia. Sem chuva não havia trabalho nem contação de moeda para o dia da feira. E, para piorar, a falta de água pra beber, o bicho de caça sumindo, a planta pendendo por cima da terra seca, aquele mundão de vida definhando sem ninguém poder fazer qualquer coisa. Somente a flor de mandacaru se exibia imponente, mas ninguém come flor de mandacaru. Dizem que ela se transforma espinho na boca de quem ousar mastigá-la.


Assim era a vida Bastião, de Alfredino, de Leocádio, de Biribeira e tantos outros que possuíam casebres de cipó, barro e ripa pelos arredores. Um monte de gente na desvalia de tudo, desde o acordar ao anoitecer olhando a cor da barra e fingindo a esperança para não chorar. Pastagens já com queimor na feição de deserto, ossada de bicho por todo lugar, tanques e barreiros com lama rachada, petrificada, uma tristeza danada tomando conta de tudo. Craibeira sem florescer, catingueira esmorecendo, xiquexique afinando. Sem pássaro para cantar, o pio agourento reinava nas noites negras.

E foi num cenário assim que nasceu Jesus. E Totonha, a mãe, ainda se recorda como se deu: no meio da noite, com o gás do candeeiro acabando, então a dor de parir assustou. Gemeu, sufocou o primeiro grito. Chega, chega homem de Deus, chega que já vai nascer. Quando o marido se embrenhou pelas veredas atrás da velha parteira era tarde demais, pois Jesus já havia nascido na cama de capim. Ai meu Jesus amado, meu menino nasceu. E assim o nome foi logo escolhido. E o destino também.

A infância de Jesus foi totalmente diferente daquela vivenciada por outros meninos da região. Ao invés de brincar, sempre preferia subir numa pedra grande de onde ficava mirando a secura do mundo ao redor. Não se sabe o que lhe vinha à mente, mas certamente muito além dos devaneios da criancice. Desde essa idade que a visão de seu mundo começou a lhe pinicar por dentro. Tudo lhe doía. Aquele sofrimento do povo, aquele suor de escravo, aquela vida de miséria sem fim, aquela mesmice de fome, sede e abandono, tudo lhe corroía por dentro. Mesmo sem escola ou professora debaixo de pé de pau, aprendeu na escrita do mundo a compreensão sobre tudo. E já rapaz feito tomou uma decisão.

E a decisão tomada foi se despedir da família e rumar mundo afora. Não tencionava se distanciar muito não, mas apenas seguir pelas estradas pregando contra as injustiças, o abandono a que todos estavam relegados, a contínua submissão aos poderes e aos governantes, sem que nada fosse feito para afastar aquela situação de contínua miséria. Não temia ser chamado de louco ou de profeta do desvario, não se importava acaso não fosse ouvido. Mas tinha dentro de si esse compromisso tido como sagrado.

Foi nessas andanças que subiu no alto da pedra mais alta para pronunciar um sermão que mais tarde ficaria conhecido como O Sermão do Mandacaru, e que a cada passagem sempre começava assim: “Bem-aventurados os que do mandacaru possuem a flor como esperança e os espinhos como força de luta...”. E prosseguia com sentenças assim: “Por que quem padece debaixo do sol, se sacrifica para sobreviver, possui um motivo maior para viver que não somente esperar que a esmola lhe chegue como submissão...”.

Até que o seu sermão chegou aos ouvidos do Coronel Benizário Aroeira. E foi o fim de Jesus. Ou o começo de uma crença maior. Passou-se a reverenciar sua memória como verdadeira santidade.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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