Por Rangel Alves
da Costa*
Enquanto
debulhava o milho Sinhá Vitoriana cantarolava: Hoje noite de saudade, tão longe
está o meu amor. Viver assim é maldade num peito que tanto sente fervor. Vou
avoar nessa noite, vou bater asa sem fim. A saudade me vem no açoite e já não
estou mais em mim... Cantando, catando espiga, debulhando a fileirada, sem um
caroço sequer cair do vasilhame de barro.
Quando a filha
dizia que ela deixasse a debulha para a claridade do dia, logo ouvia que desde
a finada bisavó que toda debulha de milho, feijão, fava ou qualquer coisa de
grão, só dava bom resultado se fosse feita depois do anoitecer, debaixo da luz
fraca do candeeiro. É que na escuridão os olhos dos grãos não enxergavam além
da bacia e assim todos caíam na fundura do tacho, sem que nenhum se perdesse
pelo chão.
Era na noite
de candeeiro que Zarolha, moça velha no caritó, fazia uma molhação danada em
cada peça de roupa que insistia pregar botão. Era um ofício instigante - e
pesaroso - presenciar a solteirona colocar linha na agulha, juntar botão no lugar
certo, depois ir enfiando a ponta fina naquilo que somente ela enxergava, e sem
dedal sem nada. O problema é que nunca saía do mesmo botão, mas por outro
motivo.
Poucos sabiam,
mas a verdade é que a solteirona apenas fingia pregar botão. De cabeça sempre
baixa, outra coisa não fazia senão se derramar em lágrimas. E chorava tanto que
pingo a pingo a roupa ficava toda encharcada. Nas noites escuras, sob a chama
amarelada do candeeiro, seu mundo solitário se fazia impossível de suportar.
Mantinha-se com a agulha e a linha à mão, mas seu pensamento sempre voltado a
algum amor do passado. Então chorava silenciosamente, cabisbaixa, como se
tivesse segurando uma camisa de um amor sumido na guerra.
A verdade é
que muitas mocinhas aproveitavam as noites de candeeiros para se debruçar nas
janelas e sonhar com seus príncipes encantados. Outras simplesmente acendiam
velas aos pés dos oratórios na esperança que um moço bonito ali chegasse como
visitante de seus corações. Ainda outras simplesmente esqueciam a chama fraca e
trêmula do candeeiro e se voltavam à pujança enluarada lá em cima, com os
mesmos sonhos de acalantar corpos tão solitários. Mas todas tristes,
entristecidas demais pelas noites vazias em corações tão carentes de amor.
Tonho Titió,
que prometeu jamais colocar bico de luz elétrica no seu casebre, parece debaixo
do sol maior assim que risca o fósforo no pavio do candeeiro. Seus olhos chegam
a brilhar de alegria e de contentamento. Deixa o pavio dançando seu amarelado
pelos três vãos da casa e segue porta afora, para além da soleira. Ali, na
noite fechada, no silêncio dos sertões distantes, apenas o murmurejar da
natureza e o sopro refrescante da brisa. Lá em cima a lua mais linda do mundo e
ainda de seus olhos as visões de um breu iluminado que tanto conhece.
Em instantes
assim nunca foge a uma talagada de casca de pau e um aboio dolente, sempre
relembrando dos tempos que montava em cavalo corredor e desandava pelo mundo
catingueiro atrás de boi valente. Tira o chapéu antigo de couro, aperta-o à
altura do peito e então solta sua voz entremeada de tristeza e saudade:
Vaqueiro que fui e que sou, num tempo que é e que já passou, sem ter mais a
montaria também me falta alegria, e sofro de tanta agonia, pelo que já fui e já
não sou. Ê boi, ê...
Enquanto isso
o candeeiro chameja lento, valseando pelo vento que vai entrando pelas portas e
janelas abertas, pelas frestas no barro da parede, pelo sopro de tudo o que se
move ao redor. Inseparável candeeiro da história matuta, dos rincões brejeiros
e das lonjuras do mundo. É um mundo de lua grande, de vaga-lume e candeeiro. É
um mundo onde a boca da noite já é de noite fechada, onde o último café do dia
é tomado ainda próximo ao entardecer, onde as famílias se recolhem pelos cantos
para os últimos afazeres do dia. Não demora muito e a porta já está sendo
fechada, pois o acordar é na madrugada ainda escurecida.
Sob a chama do
candeeiro, uma luz miúda que apenas espanta o negrume da escuridão, as faces
marcadas de tempo parecem mais bonitas, mais verdadeiras, mais realistas, ainda
que não passem de retratos entristecidos de um povo filho do tempo, das durezas
e do desalento. A chama ilumina a boca que se abre para dizer do grunhido
estranho ao longe, para lembrar que no dia seguinte não haverá mistura de
toucinho de porco, para confirmar que o querosene não passa do dia seguinte e
que a farinha e o açúcar estão no restinho.
Quando pelos
sertões, ou pelas noites sertanejas, ao longe se avistar um arremedo de luz, um
amarelado diferente em meio à escuridão, nem sempre será vaga-lume, visagem ou
poeira de fogo-corredor, mas uma casinha com seu candeeiro aceso. Quem quiser
pode ir atrás dessa luz, pois ela ainda existe. O progresso não chegou a tudo
nem em todo lugar. Por isso que o candeeiro ainda alumia vidas dentro de
barracos de barro e ripa. Nas noites sem lua, quando o pavio é apagado, então é
como se apenas a noite adormecesse seu sono cansado.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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