Por José Bezerra Lima Irmão
Uma das
maiores provas de coragem e resistência de Lampião foi atravessar a pé o Raso
da Catarina, tarefa impossível para a maioria dos mortais. Nem mesmo os
moradores das beiradas do Raso se arriscam a penetrar nele, pois a partir de
certo ponto a paisagem cinzenta estende-se plana e igual para todos os lados,
sem pontos de referência, e não há caminhos, de modo que o aventureiro,
desorientado, não sabe como voltar ao ponto de partida, e mesmo que queira
seguir em frente, pois dessa forma teria de sair em algum lugar, nem isso
consegue, porque tem de desviar-se dos obstáculos naturais que encontra, não
conseguindo manter o rumo, desnorteado diante de veredas absolutamente
idênticas que se irradiam em todas as direções, termina andando em círculos, e
aí a morte é certa, de fome e de sede. Até mesmo o gado se perde: se uma rês se
embrenha no Raso da Catarina, é dada como morta.
O Raso da Catarina, situado no norte da Bahia, tem a forma grosseira de um
retângulo, que se inicia a noroeste de Jeremoabo, entendendo-se para o norte
até o Juá, na altura de Paulo Afonso, dali alinhando para o oeste, passando por
Salgado do Melão até as proximidades de Várzea da Ema, e descendo até perto de
Canudos, fechando-se o retângulo pela trajetória do Vaza-Barris.
Denomina-se "Raso" devido à planura sem fim, que à distância parece
um mar azul, sem nenhum acidente topográfico relevante, tendo em torno de 20
léguas em todos os quadrantes. Não há fontes d'água. Não se encontra uma
sombra, pois a vegetação é baixa, espinhenta, quase sem folhagem, predominando
favelas, catingueiras, juremas, gravatás, macambiras, côroas-de-frade,
palmatórias, quipás, xiquexiques, facheiros, mandacarus. A caminhada torna-se
mais difícil porque o terreno é arenoso, os pés afundam na terra, e quando se
força a passada o pé desliza para trás, dificultando a marcha. Pior ainda: a
partir de certas horas do dia, aquecidas pelas labaredas do Sol, a areia se
transforma em brasas. Mesmo à noite continua quente por muito tempo, como
quente é o vento que sopra devagar. A partir de certas horas da noite dá-se o
oposto, vem o frio seco do sertão, sem orvalho, que regela até os ossos.
É uma região inóspita - não chove durante pelo menos durante nove meses do ano.
Naquelas terras semidesérticas, de atmosfera superaquecida e sufocante, somente resistem animais muito resistentes - cobras, camaleões, teiús, pebas, tatus, mocós, preás, capivaras, caititus, emas, seriemas, araras, gaviões, carcarás e, claro, urubus.
No início de novembro de 1929, Lampião, que se encontrava na região da Várzea
da Ema, viajou com o bando com destino a Santo Antônio da Glória. Por erro ou
intencionalmente, o matuto levado como guia, ao passar pelo arraial de São
Francisco, em vez de pegar as veredas que dava para Salgado do Melão, à
esquerda, passou direto, embrenhando-se no inferno cinzento do Raso da
Catarina.
Lampião, acostumado a andar pelas caatingas pernambucanas igualmente inóspitas
do Moxotó, percebeu que o guia estava atrapalhado e avisou:
- Mininos, esse sujeito meteu nóis no oco do mundo! Daqui pra frente acho mió voceis economizá água...
Mas, como economizar água naquele território, ainda mais se alimentando de
farinha seca e rapadura? Cada cangaceiro viajava com duas cabeças de água. Por
mais que poupassem, na tarde do segundo dia as cabaças estavam vazias. O solo
arenoso dificultava a marcha. O Sol cozinhava-lhes os miolos. A sede era de tal
ordem que faltava até a saliva para umedecer os lábios. Lampião compreendeu que
tinha de aproveitar o frescor da noite, e assim o bando passou a noite toda
andando. Já madrugada, passaram por lugares que havia moradores, já na fímbria
do Raso, mas como viajavam no escuro não viram casas nem cacimbas. Ao
amanhecer, extenuados, cambaleando, parecendo um magote de bêbados, os
cangaceiros chegaram a umas "pias" nas imediações de Arrasta-pé,
enormes caldeirões de pedras onde se acumulava água da chuva. Lampião
recomendou que bebessem água aos poucos. Alguns, assim que beberam, deram para
vomitar. Outros sofreram vertigens. Passado o pior, deitaram-se nos lajedos,
para recuperar as forças. Só então se lembraram que estavam com fome.
Fonte: livro
Lampião, a raposa das caatingas.
José Bezerra Lima Irmão
José Bezerra Lima Irmão
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