Material do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
A história do
Padim não termina com a sua morte, em 1934. Pelo contrário. A devoção e a fé do
povo perpetuam-se até os dias de hoje, já que o Padim agora "vive"
uma nova fase: a reconciliação com a Igreja Católica, deliberada no final de
2015 pelo Vaticano. Conheça as histórias do passado e o que ainda pode
acontecer com a trajetória de fé perante o Padre Cícero.
Por Janaína
Flor e Larissa Viegas (TEXTOS)Por Mateus Monteiro (FOTOS)
A história do
homem que é considerado pelo povo como um santo começou no Crato, em 1844. De
família local, o menino Cícero Romão Batista já mostrava apego aos ritos e
devoções da fé católica na infância. Ainda na juventude, escolheu a vida
religiosa. A decisão de ir para o Seminário da Prainha, administrado por padres
lazaristas da França, em Fortaleza, aconteceu pouco tempo depois da morte do
pai, vítima de cólera. Cícero ordenou-se padre em 1870. Segundo o jornalista e
pesquisador Gilmar de Carvalho, ele era tido no Seminário como opiniâtre,
palavra francesa que pode ser traduzida como "cabeçudo", obstinado,
perseverante. “[Ele] Não era visto com bons olhos. Dava para antecipar uma
relação que seria marcada pela tensão.”
A volta para a
família, no sul do Ceará, aconteceu no fim de 1871, já ordenado como padre, mas
sem função eclesiástica. Na região, Padre Cícero foi convidado por uma família
para celebrar a missa de Natal em um distrito do Crato, o mesmo lugar que viria
a ser Juazeiro do Norte. A mudança para a pequena vila aconteceu em 1872,
quando Padre Cícero fundou uma capela e começou a exercer trabalho pastoral,
preocupando-se com questões que atingiam, principalmente, os mais pobres.
“Padre Cícero
ficou para os romeiros e nordestinos como um homem que teve uma projeção muito
justificada por aquilo que, muitos anos depois, a Igreja propaga como opção
preferencial pelos pobres”, explica o professor e historiador Renato Casimiro.
Padre Cícero
ganhou influência no lugar e foi um dos principais responsáveis pelo
crescimento e desenvolvimento de Juazeiro do Norte. Por ser também muito culto,
era procurado não só por gente simples, mas também por pessoas que tinham poder
entre o povo. Dava atenção tanto aos pobres quanto aos ricos. Segundo Casimiro,
o trabalho pastoral do Padim era reconhecido por Luis Antonio dos Santos, o
primeiro bispo do Ceará, e por grandes autoridades religiosas do Estado. Por 17
anos, de 1872 a 1889, foi uma figura importante e respeitada no catolicismo
cearense, até acontecer o que é chamado de Milagre de Juazeiro.
O Milagre
A data 6 de
março de 1889 guarda o acontecimento que, sem dúvidas, é o mais marcante na
história religiosa de Padre Cícero. O fenômeno chamado de Milagre de Juazeiro
mudou a forma como o sacerdote era visto pela hierarquia da Igreja Católica, e
também foi o fato responsável, inicialmente, por atrair numerosas romarias a
Juazeiro do Norte.
Na capela de
Nossa Senhora das Dores, a hóstia colocada por Padre Cícero na boca da beata
Maria de Araújo transformou-se em sangue. O fenômeno repetiu-se até o ano de
1891, segundo Renato Casimiro, e os comentários de que era um sangue miraculoso
corriam entre o povo da região. Esse, no entanto, não teria sido o primeiro
milagre de Padre Cícero, de acordo com a irmã Annette Dumoulin, doutora em
psicologia e devota do santo popular. “Sabemos que Padre Cícero tinha dons
especiais, por exemplo, de ajudar um louco a sair da loucura. Ele tinha uma
certa capacidade de profetizar, anunciar o que estava acontecendo em outro
lugar. O fato com a beata foi o impacto maior”, afirma.
O acontecido
só chegou ao conhecimento do então bispo do Ceará, dom Joaquim, meses depois,
conforme relata Casimiro, e uma comissão de inquérito foi nomeada para examinar
o fenômeno. “A comissão nomeada pelo bispo foi a Juazeiro do Norte, assistiu às
transformações, examinou a beata, ouviu testemunhas e concluiu que o fato era
realmente de origem divina. Mas o bispo, influenciado por clérigos que
rejeitavam a ideia de milagre, nomeou outra comissão, que foi a Juazeiro,
convocou a beata, deu a comunhão, e nada de extraordinário aconteceu. Então, foi
concluído que não houve milagre.”
Padre Cícero,
o povo da região e padres que acreditavam no milagre protestaram, mas isso foi
visto como desobediência ao bispo, que enviou relatório à Santa Sé, no
Vaticano, e esta confirmou a decisão contrária ao fenômeno, em 1894. Os padres,
que não quiseram perder direitos eclesiais, se retrataram, e Padre Cícero foi
acusado de manipulação da fé, ficando proibido de celebrar missas. Foi a partir
desse momento que Padre Cícero e Maria de Araújo passaram a ser vistos pela
Igreja Católica como embusteiros.
Segundo dom
Fernando Panico, bispo da Diocese do Crato, a eucaristia é o tesouro da Igreja,
o símbolo mais precioso. É por isso que em relação ao Padre Cícero e do suposto
milagre da hóstia, a Igreja ficou receosa. “Na época do suposto milagre, houve
uma admiração pelo fenômeno, mas, ao mesmo tempo, houve um certo receio, dúvida
por parte da hierarquia local. A dúvida gera desconfiança, que pode gerar
oposição até chegar a condenação, e foi o que ocorreu com o Padre.”
Para a irmã
Annette Dumoulin, Padre Cícero é considerado santo “porque foi fiel e ficou ao
lado do povo, ajudou em dimensões além da espiritual, como grande conselheiro,
como defensor ecológico, como médico da medicina natural. Ajudava o povo a se
defender da seca, da fome, ensinava a trabalhar. E isso é o que está guardado
fielmente na memória do povo nordestino.”
Discriminação
e fanatismo
Tanto os
estudiosos do assunto quanto religiosos concordam que, na época, o Milagre de
Juazeiro foi logo tido como forjado, principalmente por preconceito e
discriminação. Para a irmã Annette Dumoulin, o fenômeno ter acontecido em um
lugar pobre, com uma beata analfabeta e negra, impulsionou a ideia de que se
tratava de um embuste. “Não se aceitou que podia acontecer um milagre aqui. O
padre francês Pierre-Auguste Chevalier, reitor do Seminário da Prainha, dizia:
‘Não se pode imaginar que Deus vai deixar a França para fazer um milagre desse
no interior do Ceará’.”
Geraldo
Menezes Barbosa, 91 anos, é o único escritor vivo contemporâneo de Padre
Cícero. O jornalista conta que, aos dez anos de idade, lembra da figura do
Padim pelas ruas, mas que só entendeu o que acontecia na época quando começou a
trabalhar com o pai, também jornalista. De acordo com o escritor, o Padre foi
afastado da Igreja por uma questão política particular do grupo católico do
Crato, por atrair mais gente para Juazeiro do Norte e deixar a cidade do Crato
com menos população. E também por ter sido motivo de muita atração, para evitar
o que a Igreja chamava de fanatismo.
“Eu via o povo
beijando a mão do Padre e ele recuando para que não beijasse porque o bispo
havia proibido, mas os romeiros pegavam e beijavam a batina. Ele estava sempre
rodeado de romeiros. Eu perguntava: ‘Papai, por que é que o povo não deixa o
Padre Cícero caminhar?’ E ele dizia: ‘Meu filho, é porque ele é um santo, está
aqui cumprindo uma missão, e o povo vem pedir graças’”, lembra Barbosa.
De Roma vieram
até decretos de excomunhão do Padre, como conta Casimiro, embora não tenham
sido aplicados, e novas sanções com ordem de restrição também eram mandadas de
lá. Havia esforço para combater o acontecimento em Juazeiro, como se o lugar
fosse um antro de fanatismo que depunha contra a pureza da religião católica no
Ceará. Os paninhos litúrgicos, que foram manchados de sangue durante as
transformações da hóstia na boca de Maria de Araújo, foram perseguidos e destruídos
pela Igreja, apagando possíveis provas. Ralph Della Cava, pesquisador sênior
adjunto do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Columbia University, em
Nova York, e autor do livro Milagre em Joaseiro, destaca que mesmo sendo
"afastado" pela hierarquia por sua crença nos milagres, o Padre nunca
se afastou da Igreja. “Ao contrário, [ele] obedecia aos duros decretos impostos
por Roma e pelas autoridades eclesiásticas locais e não parou de procurar a
restituição de suas ordens sacerdotais.” Durante toda a vida, Padre Cícero
tentou revogar a pena, tendo ido até o Vaticano em 1898, mas não conseguiu.
Posicionamento
da Igreja
O Brasil,
principalmente o Ceará, era visto como lugar de uma religiosidade pouco
desenvolvida, mas a fé do povo não procurou entender as questões dogmáticas da
Igreja, e a romaria crescia mesmo com a antipatia de alguns religiosos. Os
romeiros vinham para Juazeiro, ocupavam a igreja e diziam: ‘Viva o Padre
Cícero’. Mas nenhum padre ousava entoar junto porque cometeria uma
desobediência grave.
O nordestino
chegava no Juazeiro, mesmo sem falar do milagre porque era proibido falar, mas
com a certeza que se tratava de uma terra sagrada, um lugar sagrado, e assim se
multiplicavam as romarias. Enquanto isso, a Igreja continuava fazendo
restrições ao Padre, e além da questão do fenômeno com Maria de Araújo, também
advertia sobre o acúmulo de riquezas, já que ele tinha muitas terras que foram
doadas para os Salesianos, uma congregação da Igreja Católica, após sua morte.
Afastado da
Igreja até o fim da vida, o Padre Cícero dedicou-se à política, procurando
desenvolver a cidade fundada por ele mesmo. Faleceu em 20 de julho de 1934, aos
90 anos, e está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Na
visão do pesquisador Gilmar de Carvalho, Padre Cícero foi e é o pastor que
cuida e se preocupa com seu rebanho, estando sempre acima de qualquer rótulo.
“Não adiantou a resignação, a tolerância, a paciência. Ele poderia ter liderado
um cisma, mas preferiu se submeter às normas da Igreja. Ele foi humilhado,
desautorizado, rejeitado. Mas manteve-se fiel até a morte”, destaca.
Após a morte
do Padim, Della Cava destaca que “era do Padre que se pedia uma graça e, quando
essa era alcançada, era a ele que se pagava a promessa”. De forma gradativa, a
Igreja local passou a enxergar o Padre, que fora tão combatido outrora, como um
exemplo de sacerdote, ressaltando a bondade do homem sereno, a preferência
pelos pobres do pastor solidário e o estar próximo do povo que o caracterizam
como santo popular.
A mudança do
posicionamento da Igreja, de acordo com Carvalho, foi resultado da atuação
pioneira e atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, que foi por quase 50
anos vigário do Juazeiro. A ousadia do monsenhor abriu portas para aqueles que
vieram trabalhar depois a imagem do Padre
A beata
Não se sabe
tanto sobre a beata Maria de Araújo como se sabe da vida de Padre Cícero. Sua
personalidade é marcada pelas características que contribuíram, na época, para
a discriminação da igreja com o suposto milagre. Sabe-se que era negra, pobre e
analfabeta. Foi, de acordo com Della Cava, uma das moças que viveram em uma das
22 Casas de Caridade do Padre Ibiapina, missionário da região, e daí também vem
o título de beata.
Após o
acontecimento do milagre, foi exigido que ela fosse para Barbalha, depois para
o Crato, onde ficou enclausurada em uma casa. “A primeira coisa que a Igreja
fez foi dar esse reforço de discriminação sobre a figura da protagonista e as
características de sua personalidade terminaram por facilitar a posição da
Igreja em martirizá-la, até com tortura física”, conta Renato Casimiro.
O túmulo da
Beata, que morreu em 1913 e foi sepultada no interior da Capela Senhora do
Perpétuo Socorro – hoje Paróquia Nossa Senhora das Dores Basílica Santuário -,
foi violado e não há indícios de onde estejam seus restos mortais. Mesmo com
tanto mistério e polêmica, dom Panico afirma que “se é para falar de milagre, é
a beata Maria de Araújo que teria mais participação e influência neste
acontecimento”. Na visão dele, o Padre Cícero pode ter sido um instrumento, mas
não é possível afirmar que o milagre veio dele, e acrescenta: “Um milagre nunca
é obra do homem ou da mulher, é sempre obra de Deus”.
Política e
Cangaço
Proibido de
celebrar missas, o Padre Cícero entrou na vida política buscando desenvolver
Juazeiro do Norte, que era um distrito da cidade do Crato, incentivado por
pessoas do comércio, da política local e por proprietários de terra. Os
moradores não viam retorno dos impostos que pagavam e não havia sinais
evidentes de progresso, exceto os que o Padre Cícero havia plantado, como
traçados de ruas.
Com a
emancipação, Padre Cícero assume o cargo de prefeito por um longo período, de
1911 a 1926, com uma pequena interrupção. “A cidade passou a ter vias de
tráfegos, dezenas de veículos já circulavam, tinha energia elétrica. Entre essa
fase da política até o final da vida, ele gozou do afeto e carinho do povo
nordestino que, gradativamente, o elegeu à condição de um santo, de um homem
bom, puro, alguém que realmente merecia confiança”, explica Renato Casimiro.
Em 1911, o
Padre Cícero foi escolhido como líder de conciliação sobre a violência do
Cariri, com o Pacto dos Coronéis, por isso ganhou essa designação. Para o
pesquisador Gilmar de Carvalho, ele não teve nada a ver com os clichês dos
coronéis sertanejos. “Ele os reuniu porque era hierarquicamente superior, e
visto como um sacerdote, mesmo com toda a máquina da Igreja pronta para
triturá-lo. Não usou a política para benefícios próprios, nem para auferir
vantagens. Passou pelo autoritarismo sem se deixar contaminar.”
O professor e
escritor Ralph Della Cava acrescenta que o coronelismo marca a história do
Padre Cícero de maneira exagerada e até injusta. “Tal distorção se atribui a
uma literatura composta desde os primórdios da história de Juazeiro como ente
independente, seja por ressentidos políticos, seja por ‘modernistas’, seja por
jornalistas à procura de um furo.”
Prefeito
Cícero e Juazeiro
A história de
Juazeiro do Norte se confunde com a história de Padre Cícero, já que o
religioso com Floro Bartolomeu, médico baiano que se mudou para a localidade,
são apontados como os principais responsáveis pelo desenvolvimento do
Município.
Ralph Della
Cava explica que Juazeiro do Norte se tornou alvo de retirantes, migrantes e de
refugiados de conflitos e disputas violentas entre coronéis rivais do Nordeste
inteiro. Vieram também os desamparados da lavoura de cana-de-açúcar em falência
e da indústria amazônica de borracha. “Com este influxo humano a Juazeiro, o
Padre dava não só conselhos, mas também emprego”, enfatiza.
O pesquisador
Gilmar de Carvalho acrescenta que alguns romeiros pediam autorização para se
fixarem na Cidade e, mais ainda, pediam para que o Padre desse a eles uma
ocupação. “Eram destinados à lavoura regional, à construção de açudes,
barragens, estrada de ferro e rodovias; às artes e indústrias que floresceram
como em nenhuma outra parte do Estado, permeando e fazendo crescer a cidade a
uma velocidade inusitada”, afirma Della Cava.
Dom Panico,
bispo do Crato, reconhece Padre Cícero como o homem que está no alicerce da
transformação de um vilarejo em uma cidade. “Se, hoje, Juazeiro é o que é, deve
isso ao Padre Cícero, ou teria sido uma cidade como tantas outras aqui do sul
do Ceará. Foi o primeiro prefeito da Cidade, foi quem organizou a Cidade dentro
dos critérios mais modernos. Uma Cidade que nasceu da fé, que nasceu da devoção
do povo e continua crescendo por causa desses motivos.”
Um novo
momento
A irmã Annette
não poderia ser mais clara na hora de explicar o que aconteceu no dia 13 de
dezembro de 2015, quando o bispo dom Fernando Panico anunciou a carta que
recebeu de Roma, assinada pelo papa Francisco. “Não é uma reabilitação, não é
uma canonização. É um reconhecimento dos valores, das virtudes do Padre Cícero
a partir da fé do romeiro, a partir da realidade de hoje, dos frutos da ação
pastoral dele.” Na ocasião, a notícia foi recebida com muitos aplausos e com
uma festa por parte dos romeiros. Para a Irmã, era como se eles dissessem: “Eu
já sabia que a igreja reconheceria as virtudes do Padre Cícero”.
“Apesar de ser
popular a fé que os romeiros vivem, é também a fé da Igreja Católica,
verdadeira, autêntica, como o papa Francisco falou na carta que me enviou”,
explica o bispo dom Fernando Panico. O processo, segundo ele, iniciou-se,
formalmente, em 2006, quando o próprio apresentou ao papa Bento XVI mais de
oito volumes cheios de documentos, memórias e a história do Padre Cícero. O
processo foi introduzido depois de anos de estudos de uma comissão pedindo ao
papa a reabilitação do Padim.
Com a chegada
do documento de reconciliação do Vaticano, a igreja local comemorou por se
tratar de uma reconciliação histórica, que leva em conta todos os aspectos da
história do Padre Cícero como ser humano e sacerdote. “No ano da misericórdia,
o papa falou em reconciliação. É uma graça maior do que a graça que pedimos”,
diz o bispo.
Nos bastidores
Segundo Renato
Casimiro, o pedido de reabilitação do Padre Cícero chegou, primeiramente, às
mãos do papa Bento XVI, bem antes de ele ser papa. “Durante muito tempo, a
gente ficava mandando correspondências, petições, abaixo-assinados, às vezes,
juntavam-se milhares de assinaturas para que Roma analisasse a questão do Padre
Cícero, e isso foi chegando lá.”
Em paralelo
aos pedidos de perdão à Igreja, Juazeiro do Norte conquistou a simpatia do
mundo. Franceses, belgas, americanos, alemães e outros estudiosos produziram (e
produzem), conforme conta Casimiro, conteúdos relacionados ao Padre Cícero. “Há
um tratamento diferenciado hoje no sentido de realmente aproximar mais a Igreja
do Juazeiro a essas relações da igreja universal”, completa Casimiro.
Beatificação e
canonização
Após a
reconciliação da Igreja com o Padre Cícero, uma pergunta paira no ar: seria o
próximo passo a beatificação e, em seguida, a canonização do Padim? Segundo a
irmã Annette, nada é citado na carta recebida em 2015, mas, a partir do momento
que a Igreja dá esse passo, é possível, com o tempo e as circunstâncias, que
sejam reavaliadas as ações do Padre Cícero como sacerdote, deixando de lado os
pontos mais controversos e evidenciando aspectos positivos de sua vida e de sua
figura.
“É a partir da
fé do povo que se reavalia a personalidade e ação do Padre Cícero. O papa é
extremamente concreto, ele não desvaloriza as pesquisas científicas e
históricas, mas ele diz que o que importa é ver os resultados da ação
pastoral/sacerdotal do Padre Cícero.” Assim, a partir dessa nova visão da
Igreja em relação ao Padre Cícero, pode ou não haver o pedido de um processo de
beatificação e canonização do Padim por parte do bispo do Crato, seja de dom
Fernando ou de seu sucessor.
Passo a passo
para se tornar santo
O primeiro
passo do processo de beatificação e de canonização é, segundo Renato Casimiro,
a declaração pública de que a Igreja considera Padre Cícero servo de Deus.
Para que ela
seja feita, é necessário que o bispo do Crato emita uma petição acerca do tema.
Segundo o bispo, não existe um tempo pré-determinado para que esse passo seja
dado e, no caso do Padre Cícero, seria necessário complementar o trabalho que
foi feito no pedido da reabilitação. “Já estamos com o trabalho quase pronto.
Então é só aprimorar, formatar tudo que já temos e que não pode ser inventado,
[tudo] deve ser fidedigno aos documentos. Uma vez completado o processo
diocesano, mandaremos para Roma e, lá mesmo, sem a necessidade de vir alguém
para cá, [a Igreja] dará continuidade. A menos que Roma sinta falta de
informação e nos diga: ‘estuda melhor esse ponto, veja melhor esse aspecto’.”
Em seguida, o
Padim deve se tornar venerável. Casimiro diz que, até hoje, a Igreja ignora de
certa maneira que exista essa devoção. “A devoção do povo nordestino pelo Padre
Cícero é uma coisa ilegítima, porque ainda depende de nós.”
Após a
veneração, é possível iniciar o processo de beatificação, o caminho mais seguro
em torno da santificação e, portanto, da canonização. Casimiro explica, porém,
que esse processo depende de trâmites legais e mais formais, que analisam fatos
históricos e memoráveis, inclusive se há milagre atribuído ao candidato.
A duração do
processo de beatificação é imprevisível; a sua solicitação também. Mas, segundo
Casimiro, a postura do homem religioso e nordestino é “não deixar por menos,
porque ele tem estratégias importantes, uma estratégia é a expressão sincera
dessa devoção”. Um exemplo que o historiador cita foi o retorno da imagem do
Padre Cícero para a Igreja Matriz de Juazeiro do Norte (Paróquia Nossa Senhora
das Dores Basílica Santuário), três dias antes da Romaria das Candeias, em 2 de
fevereiro de 2016.
Esperança
Mesmo sem
nenhuma certeza acerca do processo de beatificação e de canonização do Padre
Cícero, na opinião do historiador, essas etapas devem acontecer. Segundo
análise de Casimiro, o papa Francisco tem dado continuidade ao que os papas
anteriores têm feito: beatificar e canonizar um grande número de pessoas.
Questões heroicas, de pessoas que deram a vida pela defesa da religião e de
suas convicções marcam esses “novos” santos. Já o bispo pede paciência e uma
melhor "digestão" dessa “conquista” atual, a reconciliação do Padre
Cícero.
Para Renato
Casimiro, independente de haver ou não um processo de beatificação, a relação
do nordestino com a Igreja não irá mudar. “A gente sempre escuta dos romeiros:
‘Mas, me diga uma coisa: será que o Santo Padre não sabe que o Padre Cícero é
santo? Por que não disseram ainda que ele é santo?'” Segundo o historiador,
essa convicção popular só aumentou com o passar dos anos. “A rigor, a conduta
do sertanejo, do romeiro, vai continuar a mesma, agora um pouco mais inflamada.”
Curiosidades
A
beatificação é o primeiro passo para tornar alguém santo; a canonização é o
segundo e último. “Primeiro a pessoa se torna bem-aventurada e depois, santa.
Uma vez que o papa declarou beata uma pessoa, Roma, então, pode dar
continuidade ao processo para torná-la santa”, resume dom Fernando. A
declaração da santidade de uma pessoa é atribuição do papa. Caso ele não possa
ir pessoalmente à cidade, ele delega outra pessoa, geralmente o cardeal. No
pronunciamento, conforme explica o bispo, ele afirma que, a partir daquele dia,
a pessoa declarada santa recebe a veneração e admiração que são devidas a ela.
A celebração
da beatificação ou canonização acontecia na sede de origem do pedido e, em
Roma, acontecia apenas a canonização. Algumas mudanças, porém, aconteceram.
“Roma apropriou-se da glória de poder proceder, seja beatificação ou
canonização”, explica o bispo dom Fernando Panico. Quando o papa Bento XVI
assumiu, mais uma alteração, que segue até hoje: os beatos são declarados na
cidade onde eles viveram e morreram.
Pontos de
vista
O que
estudiosos e historiadores dizem acerca da possível beatificação e canonização
do Padre Cícero:
Ralph Della
Cava, pesquisador da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos
As rodas das
burocracias andam bem devagar. As do Vaticano não são nada diferentes. Por
exemplo, a recente reconciliação do Padre Cícero levou pelo menos um decênio de
petições e precisou da intervenção da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, do bispo diocesano do Crato e de delegações ao Vaticano de numerosos
fiéis do Juazeiro e do Cariri. Tais iniciativas datam a partir de 1898!
O elemento
mais positivo e alentador foram as palavras do papa Francisco. Segundo o que
foi citado nos jornais, o Papa da Misericórdia disse que o Padre Cícero era “um
padre exemplar”, um sacerdote para a “Igreja que está emergindo” e para uma
igreja “de nossos tempos”. É que ele será logo ou mais tarde beatificado ou
canonizado? Tampouco ninguém pode prever. Mas, por enquanto, Padre Cícero é
para os seus devotos o que ele sempre foi: o Santo do Juazeiro.
A
reconciliação era inadiável. Demorou muito. Do meu ponto de vista, esta
reconciliação é fruto de muitos esforços. Ressaltaria a atuação pioneira e
atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, por quase 50 anos vigário do
Juazeiro. Monsenhor Murilo pedia palmas e dava vivas ao Padre, celebrava a
Missa dos Chapéus, reforçava o uso do rosário e sedimentava uma imagem do Padre
Cícero, a partir dos valores da "nação romeira". Depois dessas
ousadias e quebras das arestas, ficava mais fácil trabalhar a imagem do Padre,
pelos que viriam depois.
O romeiro
sempre santificou o Padre Cícero e recorreu a ele nos momentos difíceis. Não
vai ser difícil beatificá-lo ou canonizá-lo. Os milagres são numerosos. Estão
no rol dos ex-votos, nos folhetos de feira, nas narrativas orais. Para os
romeiros, Cícero sempre foi santo. A reconciliação com a Igreja é mais
importante para a Igreja nestes tempos de avanço do pentecostalismo evangélico.
Cícero é uma preciosa “arma” junto aos segmentos populares, que mantêm com ele
uma relação de paixão e fé.
Infográfico
Galeria de
Fotos
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