*Rangel Alves
da Costa
Olha só que
coisa mais sem pé nem cabeça. Eis que sonhei com o Padre Mário apontando em
correria, subindo num cavalo alazão de um pulo só, depois tomando rumo da Praça
da Matriz e daí enveredando pela Rua Deoclides Lucas. E umas seis ou sete casas
após, refrear o animal para gritar: Acorda Marizete!
Marizete
dormia em sono profundo, certamente cansada dos tantos anos de ofícios e passos
na sua fé. Já muitos anos atrás e ela virando a noite e descortinando a manhã
velando o Cristo nas sextas-feiras santas antigas. Enquanto a cidade adormecia,
ela e mais tantas em rezas, ladainhas e orações. Mazé de Iracema, Dona Maria
José de Zé Preto, Geovanete, Dona Peta e tantas outras vozes afinadas pela
devoção. “Sede em meu favor, Virgem soberana, livrai-me do inimigo com o vosso
valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em
Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém”.
Ecoa-me na
memória tanta beleza em um povo humilde. Hoje a Igreja Matriz está muito
diferente, bonita, resplendorosa, mas noutros idos era um templo pequeno, com
três portas estreitas à frente, duas de lado e um interior sem muito espaço
para os fiéis. Ainda assim já com outra feição daquela em que Padre Arthur
Passos celebrou missa na presença de Lampião e seu bando. A pedido do próprio
cangaceiro e de China do Poço, permitiu que a cabroeira adentrasse ao templo
para o ofício, mas com a condição de que as armas pesadas ficassem do lado de
fora, posicionadas no pé da parede.
Talvez por
isso mesmo, imaginando a presença dos cangaceiros diante do altar, Alcino
passava lentamente ao redor da matriz. De chinelo havaiana nos pés, mordendo a
gola da camisa, ou mesmo cantarolando baixinho uma velha canção cabocla de
Tonico e Tinoco, ele seguia absorvendo cada passo na terra que tanto amava.
Apaixonado pelo seu sertão, pela sua gente e sua história, rumava em direção ao
assento da praça e lá se punha a meditar sobre aquele mundo tão belo e tão
esquecido. E depois rabiscava sobre aquele incompreendido sertão.
Infelizmente,
sempre um incompreendido e renegado sertão. Até mesmo por parte de muitos de
seus filhos, o que é mais doloroso. O filho de hoje só quer viver o presente,
curtir, viver o imprestável de cada descartável instante. Perguntem ao jovem
pelo forró, pela sua história, pelo seu passado. Pouco ou nada sabe. Parece
ontem, mas muitos sequer recordam mais do Forró de Miltinho. E Miltinho,
fabulosa figura humana, sempre merecedor de uma grande homenagem, tudo fez para
que a tradição forrozeira de Poço Redondo não acabasse. Com sua partida, as festas
de agosto e outras festas ficaram órfãs do verdadeiro pé-de-serra, do ralabucho
e do chinelado.
As festas
antigas, aí sim, é que eram festas. Mesmo que de vez em quando Doutor Heraldo
da Serra Negra entrasse com cavalo e tudo pelos salões, nada tirava o brilho e
o prazer dos sons das sanfonas, dos zabumbas e dos triângulos. Há sempre que se
reverenciar uma gente que, com sua arte, tornou o sertão mais alegre: Zé
Aleixo, Zé Goití, Dudu do terno de linho branco, Agenor da Barra, Dida. E ainda
ouço Zelito de Pão de Açúcar, do forró de Zé Aleixo, batendo o triângulo e
cantando: Olhe eu não posso ver ninguém chorar, porque vem logo uma vontade em
mim, quem foi que disse que não chora por amor, pois os meus olhos já chegaram
ao fim...
Também ainda
ouço o carro-de-bois gemendo pelos estradões, avisto o animal esquipando pelas
veredas, ecoa-me o velho aboio e a velha toada. Mas tudo parece distante
demais. E está, pois assim quis o homem. Não temos mais Dionísio para preservar
nossas tradições de cavalhadas, não temos mais Miltinho para salvaguardar o
verdadeiro forró. Não temos mais Alcino para cantar, em prosa e verso, seu Poço
Redondo. E como faz falta esse passado onde a gente sertaneja em tudo se
reconhecia.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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