Por Raul Meneleu Mascarenhas
Foi no início
da década de 1970 que conheci pessoalmente Frederico Pernambucano de Mello e
travei contato com os primeiros resultados de suas pesquisas e reflexões sobre
o Cangaço — tema que nos fascina a ambos e que é, a meu ver, o maior
responsável pela sedução que o Sertão nordestino vem exercendo, por motivos
diversos e desde o início do século XX, sobre várias gerações de escritores,
sociólogos, historiadores e artistas brasileiros, de todas as regiões do
País.
Em 1973, em um
artigo que publiquei no extinto Jornal da Semana, do Recife, a propósito do
romance Sem lei nem rei, de Maximiano Campos — escritor nascido no Recife, de
estirpe da Zona da Mata pernambucana e das casas de engenho, mas cujo romance
gira em torno do Cangaço, da caatinga e das casas de fazendas sertanejas — fiz
referência ao trabalho de Frederico Pernambucano nos seguintes termos: "Ao
tempo cm que apareceu Sem lei nem rei, eu ainda não conhecia Frederico
Pernambucano, um dos maiores conhecedores do Cangaço com quem já tive
oportunidade de conversar. Não conhecia, portanto, sua teoria a respeito da
personalidade dos cangaceiros, teoria que procura explicar a psicologia desse
nosso herói extraviado através de dois polos principais: o orgulho e aquilo que
Frederico Pernambucano chama de 'o escudo ético'.
Com a
franqueza e a ausência de inveja com que procuro me pautar, digo que, sem sombra
de dúvida, a teoria de Frederico Pernambucano — que eu espero ver um dia
colocada por ele em livro — foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu
convincente: foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos
contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros".
(jornal da Semana, Recife, 24 a 30 de junho de 1973).
O meu desejo
de ver a teoria de Frederico Pernambucano em livro se realizaria em 1985, com a
publicação do seu admirável Guerreiros do sol: violência e banditismo no
Nordeste do Brasil, livro que se tornou um clássico da historiografia do
Cangaço. Trata-se, de fato, de um livro de qualidades incomuns, ao qual tenho
voltado de vez em quando para relê-lo e sentir o mesmo impacto, a mesma força
que ele me transmitiu na primeira leitura — sem que eu tenha até hoje
compreendido bem, diga-se de passagem e sem desrespeito, à memória de Gilberto
Freyre, a afirmação que este faz em seu erudito prefácio, quando aponta as
"lições" que Frederico teria aprendido com os "romancistas
ingleses".
Tendo passado
toda a minha infância e parte da adolescência no Sertão da Paraíba, entre os
anos de 1928 e 1942, foi desde cedo que entrei em contato com "o mundo
estranho dos cangaceiros", para fazer-me valer da expressão de Estácio de
Lima. Menino ainda, antes mesmo de ter aprendido a ler, ouvia casos e histórias
envolvendo os cangaceiros, suas incursões pelas vilas e fazendas e seus atos de
heroísmo e crueldade, narrados por meus familiares e pelo povo sertanejo, por
agregados e trabalhadores das fazendas do meu Pai e dos meus tios.
Depois, na
feira de Taperoá, entrava em contato com os cantadores e poetas populares,
através dos quais muitas daquelas histórias reais eram transfiguradas na
primeira poesia de natureza épica que conheci em minha vida. Com o passar do
tempo, naturalmente, à medida que eu crescia e abria os olhos para o mundo,
tudo aquilo foi se identificando com o meu universo familiar e pessoal. Eu
tomava consciência, por exem-plo, de que meu Pai, João Suassuna, que governara
a Paraíba de 1924 a 1928, e que, então Deputado Federal, tombara assassinado em
1930, numa rua movimentada do centro do Rio de Janeiro, naquele que até mesmo
um dos seus adversários políticos — José Américo de Almeida — considerou
"o mais monstruoso dos atentados", foi, ao longo do seu mandato de
Governador — ou de "Presidente", como se dizia no tempo —, incansável
na luta contra o Cangaço, tendo sido o grande responsável pelo fim dos ataques
e incursões dos bandoleiros em terras paraibanas. Com o aumento considerável no
efetivo da força policial, reforço no armamento, adoção de uniforme mais
condizente com as condições ecológicas da caatinga e a criação de tropas
"fora de linha", a Paraíba, durante o governo de João Suassuna — que
contava com o apoio incondicional do Coronel José Pereira, seu correligionário
e líder político da cidade de Princesa — passou inclusive a colaborar de modo
efetivo com outros estados nordestinos na luta contra o Cangaço, tendo as
volantes paraibanas ido em auxílio de municípios de Pernambuco, do Ceará e de
Alagoas.
Foi, aliás, no
município de Flores, em Pernambuco, lutando contra uma volante da Paraíba, que
o bando de Lampião sofreu, em 1925, uma de suas maiores baixas — a morte de
Levino Ferreira, um dos irmãos do chefe. De maneira que é com imenso orgulho
que ouço, ainda hoje, o repente popular:
Lampião
acovardou-se
com a sua
cabroeira.
Não entra na
Paraíba
com medo de Zé
Pereira:
o doutor João
Suassuna
mandou dar-lhe
uma carreira.
Que se
entenda, então, que quando afirmo a minha admiração pelos cangaceiros, fazendo
a sua exaltação enquanto figuras romanescas e de expressão do Nordeste, ou
reconhecendo a coragem da sua vida épica e desgarrada, não estou, de maneira
nenhuma, fechando os olhos para o fato de que eram também bandidos impiedosos,
que sacrificavam vidas de pes-soas indefesas e pacatas da forma a mais brutal
possível — e creio que isso tenha ficado claro naquele artigo há pouco citado,
quando falo num sentimento contraditório de admiração e repulsa.
Mas, de fato,
não há como negar o fato de que o cangaceiro não era um bandido comum. Sem
entrar em detalhes que identificariam "tipos de Cangaço" dentro do
Cangaço, o cangaceiro era um guerreiro extraviado no tempo, com sentimentos de
honra e lealdade fora dos padrões normais, às vezes somente compreendidos no
seio do seu próprio grupo. Como já afirmei em outra oportunidade, creio sim que
somente quem estuda o fenômeno do Cangaço com espírito sectário pode se
extremar na admiração sem reservas ou na condenação total dos cangaceiros,
vendo-os ora como reivindicadores sociais, por um lado, ora como simples
bandidos, no sentido estritamente jurídico do termo, por outro.
A aura de
epopeia que indiscutivelmente o envolve tem feito do Cangaço, ao longo do
tempo, fonte inesgotável de inspiração para artistas dos mais diversos gêneros
— da Literatura ao Cinema, do Teatro às Artes Plásticas — tanto na vertente
erudita quanto na popular. E se há no Cangaço um elemento épico, este é ainda
exacerbado pelos trajes e equipagem dos cangaceiros, com os seus anéis e
medalhas, seus lenços coloridos, seus bornais cheios de bordaduras, os chapéus
de couro enfeitados com estrelas e moedas — tudo isso que se coaduna
perfeitamente com o espírito dionisíaco de dança e de festa dos nossos
espetáculos populares e compõe uma estética peculiar, rica e original, agora
minuciosamente estudada por Frederico Pernambucano neste seu novo trabalho, que
tenho a honra de prefaciar.
Como bem
afirmou Carlos Newton Júnior, em um dos poemas do seu livro Canudos, trata-se,
de fato, de uma
Estética
orgânica,
estética de
organismo, de vida.
com a sua
cabroeira.
Não entra na
Paraíba
com medo de Zé
Pereira:
o doutor João
Suassuna
mandou dar-lhe
uma carreira.
Que se
entenda, então, que quando afirmo a minha admiração pelos cangaceiros, fazendo
a sua exaltação enquanto figuras romanescas e de expressão do Nordeste, ou
reconhecendo a coragem da sua vida épica e desgarrada, não estou, de maneira
nenhuma, fechando os olhos para o fato de que eram também bandidos impiedosos,
que sacrificavam vidas de pes-soas indefesas e pacatas da forma a mais brutal
possível — e creio que isso tenha ficado claro naquele artigo há pouco citado,
quando falo num sentimento contraditório de admiração e repulsa.
Mas, de fato,
não há como negar o fato de que o cangaceiro não era um bandido comum. Sem
entrar em detalhes que identificariam "tipos de Cangaço" dentro do
Cangaço, o cangaceiro era um guerreiro extraviado no tempo, com sentimentos de
honra e lealdade fora dos padrões normais, às vezes somente compreendidos no
seio do seu próprio grupo. Como já afirmei em outra oportunidade, creio sim que
somente quem estuda o fenômeno do Cangaço com espírito sectário pode se
extremar na admiração sem reservas ou na condenação total dos cangaceiros,
vendo-os ora como reivindicadores sociais, por um lado, ora como simples
bandidos, no sentido estritamente jurídico do termo, por outro.
A aura de
epopeia que indiscutivelmente o envolve tem feito do Cangaço, ao longo do
tempo, fonte inesgotável de inspiração para artistas dos mais diversos gêneros
— da Literatura ao Cinema, do Teatro às Artes Plásticas — tanto na vertente
erudita quanto na popular. E se há no Cangaço um elemento épico, este é ainda
exacerbado pelos trajes e equipagem dos cangaceiros, com os seus anéis e
medalhas, seus lenços coloridos, seus bornais cheios de bordaduras, os chapéus
de couro enfeitados com estrelas e moedas — tudo isso que se coaduna
perfeitamente com o espírito dionisíaco de dança e de festa dos nossos
espetáculos populares e compõe uma estética peculiar, rica e original, agora
minuciosamente estudada por Frederico Pernambucano neste seu novo trabalho, que
tenho a honra de prefaciar.
Como bem
afirmou Carlos Newton Júnior, em um dos poemas do seu livro Canudos, trata-se,
de fato, de uma
Estética
orgânica,
Estética de
organismo, de vida.
Estética
orgânica,
Estética de
organismo, de vida.
Contrária ao
branco, ao cinza,
À morte
descolorida.
Ora: se todo
prefaciador é de certo modo suspeito em seus elogios, devo confessar que, no
meu caso, a suspeição aumenta ainda mais, pois vejo que eu e Frederico
Pernambucano concordamos em quase tudo o que diz respeito ao Cangaço. Além
disso, Frederico encontra frases e expressões precisas e de grande efeito
poético para definir as suas ideias, sempre ricas e cheias de sugestões.
Para dizer,
por exemplo, aquilo que afirmei há pouco, no tocante ao fato de que os
cangaceiros não eram bandidos comuns, afirma Frederico que eles eram
"criminosos na epiderme e irredentos no mais fundo da carne". Outra
expressão muito bem conseguida é a "blindagem mística" que Frederico
identifica a certa funcionalidade dos trajes dos cangaceiros, pela profusão de
signos de defesa e rebate que eles usavam como adornos. De maneira que, se
tivessem sido outras as minhas inclinações no campo das Letras; se o destino e
a vida tivessem me direcionado, em algum momento, não para a Beleza da
Literatura, mas para a Verdade das ciências — da História, da Sociologia ou da
Antropologia; se a enigmática roda da Fortuna tivesse me lançado em outro palco
que não o do Picadeiro-de-Circo onde exerço, até hoje, ainda animoso e cheio de
esperanças, as minhas artes de Palhaço frustrado, de Cantador sem repentes e de
Professor; não seria outro, senão este Estrelas de Couro, de Frederico
Pernambucano de Mello, o livro que eu gostaria de ter escrito.
Ariano
Suassuna Recife, 15 de março de 2010
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/07/cangaceiros-guerreiros-extraviados-no.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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