*Rangel Alves
da Costa
Ainda não o
conheço, mas ouço muitos relatos acerca de sua existência. Trata-se de um
cemitério dos negros encravado no alto da Serra da Conceição, esta fazendo
parte do complexo montanhoso denominado Serra da Guia, onde se assenta o ponto
culminante do estado de Sergipe, no município sertanejo de Poço Redondo,
próximo à divisa com Pedro Alexandre, antiga Serra Negra, no estado da Bahia.
A Guia é uma
das mais antigas povoações das terras poço-redondenses, surgida em moldes
diferentes dos demais desbravamentos vindos das beiradas do São Francisco, vez
que nascida com escravos fugidios de outras paragens nordestinas e ali fixando
moradia em quilombos. Então, entre serras ou no alto dos montes, os negros
foram gestando um novo viver, em meio às durezas da terra, perseguições e
misérias, até se enraizarem como comunidade forte e abnegada, além de
possuidora de imensa riqueza histórica e cultural.
Enquanto
comunidade quilombola, o seu reconhecimento só foi conseguido a duras penas.
Durante todo um percurso de vida, o povo negro da Guia foi reconhecido apenas
pela sua herança escrava, pela cor e principalmente por uma moradora famosa:
Zefa da Guia, parteira renomada, mulher das quatro artes na reza, no
curandeirismo e no benzimento. Somente a partir de 2009, a Fundação Cultural
Palmares reconheceu oficialmente o seu status de comunidade quilombola.
Mesmo
reconhecida, a comunidade da Serra da Guia continua vivendo na simplicidade, e
até na pobreza, como nas gerações passadas. Grande parte reside em casas de
cipó e barro, com fogões de lenha e demais utensílios rústicos tão costumeiros
nos tempos idos. Outra parte, mais economicamente favorecida, possui casa de
alvenaria e algum conforto. Cultivam a terra, quando a chuva deixa, e quando
não se reinventam pela necessidade de sobrevivência. E uma sobrevivência
dificultada até mesmo pela distância e isolamento da região.
A
religiosidade é fator de grande relevância na comunidade da Guia. Ali explícito
o sincretismo religioso: o catolicismo é abraçado pela mesma mão que preserva
outros cultos. A crença na divindade cristã não impede que os cultos de origem
africana continuem sendo praticados, que as crenças sejam diversificadas e as
superstições continuem com relevância. O curandeirismo, por exemplo, é
usualmente praticado, ainda que a curandeira seja aquela mesma que organiza as
festas religiosas. São tradicionais os novenários da Santa Cruz nos nove dias
que antecedem o três de maio, dia santo da Santa Cruz.
Mas segundo
informações de Manoel Belarmino, um poço-redondense profundo conhecedor da
história sertaneja, a comunidade da Serra da Guia não era onde hoje está, no pé
da serra, mas na região onde está o cemitério, no alto da serra. Neste
cume ainda são encontrados sinais da antiga povoação, tais como escombros de
antigas casas de farinhas, de casas de ferreiros, pés de cajueiro e mangueiras
espalhados juntos à vegetação nativa, além dos escombros das primeiras
moradias. E não é difícil encontrar gamelas, restos de potes, pedaços de bancos
de madeira e outras quinquilharias espalhados pelo mato. Tudo lá no cimo,
afastado das paisagens abertas mais abaixo.
Ainda segundo
Belarmino, o cemitério da Guia fica no ponto mais alto da Serra da Conceição,
exatamente onde se concentra a vegetação com mais forte característica de mata
atlântica, pois ali as orquídeas, as bromélias, as plantas de folhagens largas
e as árvores altas e pujantes. É neste entremeado que estão as sepulturas dos
ancestrais quilombolas, onde jazem aqueles primeiros que chegaram fugindo do
açoite, do tronco, do contínuo sofrimento. Tudo como um santuário negro, de
extrema simbologia devocional, cujo acesso dificultoso imprime a feição de
paraíso aos escolhidos.
Quando a
comunidade desceu a serra e se estabeleceu nos arredores abaixo, aquele
cemitério lá permaneceu exatamente como um marco da ancestralidade. As
sepulturas, contudo, não poderiam nem deveriam ser abandonadas ou esquecidas e,
por isso mesmo, alguns enterros de descendentes continuaram sendo feitos no
cume da serra, ainda que fossem muitos os sacrifícios para escalar ladeiras e
caminhos íngremes, levando o defunto e todo o peso da dor dos parentes. Por que
atualmente se utiliza o cemitério de baixo, é preciso que a pessoa, com
linhagem ancestral e ainda em vida, deixe claro o desejo de que sua sepultura
seja aberta naquela terra sagrada pela negra raiz.
Contudo, o
cemitério no alto encravado, vai muito além de ser apenas uma última moradia
ancestral. Na fuga, os escravos se abrigaram no alto da serra para dificultar a
localização e permitir uma eficiente defesa. Ali se tornou um local seguro para
se viver. E também o mais garantido para a perpetuação da alma após a morte. As
sepulturas ali existentes são como pilares de fundação da nova vida de um povo,
reverenciadas em rituais e tidas como no primeiro degrau de um céu dos negros.
No alto da serra, próximo das nuvens, os espíritos ancestrais estão mais
próximos de seus deuses negros e da divindade maior.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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