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terça-feira, 21 de março de 2017

O MENINO E O VELHO (E UM MAR)

*Rangel Alves da Costa

Numa só ser humano e duas idades tão diferentes, duas fases existenciais tão distintas, ainda que um vá gerando o outro, ainda que este nunca deixe de ser aquele. Um menino e um velho, ou o velho e o menino. O que os separa tanto, será que é a compleição física, o viço e o vigor, a predisposição para a vida, as marcas da idade que vão surgindo no rosto, os espelhos embaçados que vão surgindo, os cabelos tingidos de outra cor, a alegria e a tristeza? Também tudo isso, mas não apenas isso.

Entre o menino e o velho há a distância da existência e o fio alongado do varal do tempo. De um lado o menino sendo tecido e do outro velho tendo sua tessitura desgastada e quebradiça. De um lado a semente brotando em flor e do outro a palha acinzentado pelo outono da vida. De um lado o olho brilhando com tanto sol e tanta lua e do outro o olho anuviado pela opacidade do espelho dos anos. De um lado a correria, a alegria, o entusiasmo sem fim, e do outro o passo lento, a curvatura, o cansaço da estrada.

De um lado o cavalo de pau e a pipa colorida e do outro a bengala ou cajado e o frasco do remédio controlado. De um lado a traquinagem e o rebuliço, a travessura e o tanto faz, e do outro o cuidado a cada passo, a cada gesto, a cada situação de existência. De um lado o menino e do outro o velho. De um lado a flor roubada para ser deixada à janela, de outro um velho porta-retratos cheio de saudades. Um velho que também volta a ser menino a partir de certa idade. Um menino que também já é velho quando se reconhece na vida e perante os perigos da caminhada.

Há no menino um sonho. Em todo menino há um sonho. Acaso ainda não tenha em si florescido um entendimento maior, certamente que tudo será como um punhado de algodão doce, um arco-íris bonito nos horizontes, uma maçã do amor, uma bola de futebol, uma boneca de pano. Tudo belo e tudo maravilhoso. Daí nascer o sonho de ser a vida assim também, repleta de alegrias e contentamentos, cheia de prazeres e inocentes desejos. Não há nada ruim ou difícil nessa idade. É o tempo do fazer sem se preocupar com as consequências, do experimentar pelo deleite do instante.


A brincadeira surge como sustentação da idade, como forma de satisfazer os instintos mais naturais. Nada mais belo que a chuva caindo e ele mesmo se lançando em nudez debaixo da chuvarada. Nada mais encorajador do que pular cerca de quintal para colher goiaba caída no quintal vizinho. Nada mais delicioso do que se fartar com pirulito de mel ou geladinho de ki-suco. Nada mais atraente que o pequeno animal, que as pequenas surpresas da natureza, que o circo que chega e vai logo anunciando o palhaço mais engraçado do mundo.

Contudo, se já está com mais idade e sua consciência já esteja sendo moldada num plano maior de realidade, então o que se busca é mesmo aproveitar o que ainda é lhe permitido pela idade, pois já sabendo que logo sua bola de gude vai ser transformada em caderno e livro. E assim vai caminhando perante os novos percursos. É como se um paraíso fosse dando lugar a uma estrada, e nesta um mundo de desafios novos e desconhecidos. Mas nunca deixa de ser menino, pois a seiva da vida é exatamente a eterna permanência da criança, ainda que na idade mais avançada.

Então o velho olha pela janela, avista o seu passado na estrada, e tenta a todo custo ser aquele menino de antigamente. Não por que deseje fazer as mesmas traquinices de outrora, rodopiar vida afora sem medo e sem pressa, mas simplesmente para relembrar seus doces anos. E nesta nostalgia - tantas vezes tão tristes como dolorosas - a vontade imensa de novamente ter toda uma vida pela frente. E fazer tudo aquilo que agora se arrepende de não ter feito, viver com mais intensidade do que viveu, ser mais menino sem qualquer pressa de crescer, de ser homem feito.

Dói na idade esse espelho do tempo, essa janela aberta para o passado. Muitas vezes sequer se dá conta de que ele é a ainda aquele menino que tanto gostaria de ser. Já foi criança, já brincou, já fez travessuras. Nada mais pode fazer. As forças não permitem mais. Entretanto, não deixa de ser tratado como um menino. Como um paradoxo da existência, o velho acaba voltando ao berço da criancice. É cuidado como se criança fosse, é acalantado como se criança fosse, é até recriminado como se criança fosse. Vovô não faça isso, vovô não faça aquilo, vovô age como se fosse criança.

Tudo como um mar tão belo nas suas areias, nas suas primeiras águas, no olhar suas vastidões. Porém, de distância incerta, perigosa, tortuosa, desconhecida. Um menino como uma concha que repousa alegre ao sabor do vento. Um velho que se distancia num barco de pouca força para vencer as tormentas.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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