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sexta-feira, 3 de março de 2017

QUANDO TUDO ESTURRICA E O GADO OSSUDO CAI

*Rangel Alves da Costa

As cenas já estão aterrorizantes. Os mais jovens certamente jamais haviam avistado algo assim. Somente agora podem confirmar aqueles causos contados pelos mais velhos, dando conta das secas medonhas e todo tipo de bicho, principalmente o gado, caindo de magrez e fraqueza e logo se tornando comida de urubus, gaviões, carcarás e outras aves carnicentas. O que parecia invencionice agora se mostra em realidade espantosa: o bicho caindo ossudo e o bico carnicento devorando seus restos.

Tudo verdade no que os mais velhos diziam. O gado, já sem mugido ou berro, vai suportando como pode, andando de lado a outro debaixo do sol, até o instante que um tropeço de nada anuncie o seu fim. Em meio à sequidão, sem ninguém para imediatamente levantar, quando a vaquinha de couro e osso cai não há mais o que fazer. Sem força para se erguer, sem sombreado ou poça d’água adiante, sem cuia de palma seca ou farelo gorgulhento, os seus dias estarão ali terminados.

E que sina mais triste a do bicho em época de seca grande. Até a chuva lhe faz correr perigo de morte. O que cairia de riba como salvação, de repente pode se transformar em sua sentença de morte. E assim por que de tão fraco que está não é todo bicho ossudo que suporta chuvarada forte, principalmente se a terra seca logo se torna lamacenta. O peso da trovoada sobre os ossos e as dificuldades de caminhar pelo fraquejamento, sempre provocam riscos de escorregões e de ter o lamaçal como túmulo. Assim ocorre muito sertões adentro após as trovoadas que caem pesadas. A fraqueza do gado é tanta que até caminhar se torna em sacrifício. E tomba para morrer pela água.

Apenas dois homens não conseguem levantar uma vaca caída pela trovoada. Dá um trabalho danado e nem sempre com bom resultado. Além da lama dificultando o trabalho, também a moleza do bicho já entregue ao seu fim. E mais: encontrar forças suficientes para empurrar o animal sobre uma espécie de padiola de couro cru e depois erguê-la com o animal em cima, colocando como trempe num canto de curral. E nos dias seguintes, acaso o bicho se mostre mais reanimado, cuidar de sua alimentação como se de uma pessoa enferma, dando praticamente na boca a água, a comida, o remédio. O trabalho do dono somente é justificado pelo profundo apego ao animal. Um caso de amor sertanejo.


Tudo isso faz parte do mundo das secas e também das chuvas. Depois de anos e mais anos de seca, as chuvaradas que caem chegam como soluções e também como problemas. O gado que tanto sofre pela falta d’água nas fontes e nas plantas, também tenderá a sofrer logo nas primeiras chuvas caídas. Sua fragilidade é tamanha que até pode não suportar pingo grosso. Assim também com a terra. Muitas vezes, as chuvas são tantas que ao invés de descerem e irem se acumulando nas entranhas, simplesmente seguem adiante em enxurradas, deixando o solo ainda mais empobrecido.

Contudo, mesmo que tais problemas possam surgir com a chegada das trovoadas (e que um dia haverão de chegar), a esperança do sertanejo é que logo acabe tanto sofrimento causado pela estiagem já duradoura demais. O homem da terra nunca perde a esperança de tudo renascer. Dia após dia, a cada madrugada ainda escurecida, e ele saindo na porta para olhar a barra distante. Os olhos secos, um tanto entristecidos diante da mesmice nos horizontes, não afastam, porém, outra visão bem mais singela: o seu mundo sertão que ainda não morreu.

Mas a verdade é que os tempos estão difíceis demais. O sertão secou de vez, tudo esturricou, queimou, virou cinzas. Para onde o olho se volte, o que se tem é aquele mundão acinzentado de sol, numa desolação que traz sofrimento somente em avistar. E a vaquinha magra andejando lenta, entristecida, em busca de um impossível sombreado. E o calango correndo de canto a outro, subindo em ponta de pedra para se espantar com o avistado. Cactos mortos, espinhos caindo, palmas retorcidas pela secura da seiva. Um mundo aflito e angustiado é esse mundo sertão de agora.

Desde muito - e sempre e sempre - que eu venho escrevendo aqui sobre a danada da seca que assola o sertão sergipano. O cenário é o mesmo, a paisagem é a mesmo, a dor e o sofrimento também. Daí que eu achar que qualquer texto escrito num ano teria a mesma descrição de um novo escrito sobre a nova seca. Enganei-me. Dessa vez nem Rachel de Queiroz (O Quinze) nem Graciliano Ramos (Vidas Secas) possuem descrições parecidas com o que agora acontece.

Quem duvidar, então que chegue até lá para presenciar e sofrer. O cesto de palma sem uso num canto, a cocheira vazia, o tacho d’água vazio. Mais adiante, quando ainda resta alguma vaquinha, somente uma carcaça andante. Lá de riba, onde o céu se esqueceu da nuvem, descendo a fornalha ardente. O sol, o sol. E quando se ouve um berro ao longe, não se sabe se ainda a vida ou o último gemido. Assim o sertão de agora. A terra de fogaréu e mais triste paisagem.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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