*Rangel Alves
da Costa
Se as
histórias se confirmaram, nesta Semana Santa Queremundo novamente surgiu para
assustar o sertão inteiro. Já reina medonhamente desde o início da quaresma,
quando sua transformação em lobisomem deixa meio mundo em polvorosa, desde os
iluminados das ruas aos escondidos dos quintais e afastados de plena escuridão.
E já desde mais de vinte anos que essa história passa de boca em boca, com
gente jurando pela mãe e pelo pai que é verdade, que até já o avistou no breu
debaixo de pouca lua.
Quem coisa
mais estranha e esquisita é essa história de Queremundo, o que vira bicho, o
que vira lobisomem, o que é avistado como um ser transfigurado em fera. Tanta
coisa num só por que a cada relato surge uma aparição diferente, sendo a de
lobisomem a mais constante e afamada. Mas há gente dizendo que do seu vulto
outra coisa não se avista senão um cachorro grande, peludo demais, de cabeça
disforme, olhos afogueados e dentes descomunais. Há também quem afirme ser
metade homem e metade bicho, sendo da cintura pra cima a coisa mais feia do
mundo, com olhos em chamas, orelhas pontudas, dentes apunhalados e cabelos
desgrenhados por todo lugar.
Seja de que
jeito for, a verdade é que a história de Queremundo virando bicho se alastra
desde muito. O homem é estranho mesmo, de poucas palavras, um tanto carrancudo,
gostando de viver afastado de todo mundo. E quando o período quaresmal se
aproxima então, pois chega a sumir por dias. E tal fato logo chama a atenção
dos conversadores debaixo dos pés de pau, afirmando sempre que o cabra se
esconde assim porque passa o dia dormindo para a transformação da meia-noite em
diante. E também porque não quer mostrar as marcas pelo corpo deixadas pelos
tocos e gravetos quando rola pelo chão quando em bicho vai se transmudando e
pelos arames que lanham o corpo do bicho em fuga.
Tudo isso,
contudo, sem ninguém ter certeza. O próprio Queremundo é capaz de desandar
bofetão em qualquer um que lhe chegue com a mínima insinuação. Só não diz nada
- e até fica todo manso e desconfiado - na presença da Velha Totonha. Somente
ela sabe o seu segredo, somente ela conhece o começo e fim dessa história de
virar bicho da quaresma em diante. Contudo, não revela nada a ninguém. O que
seus olhos viram e seus ouvidos ouviram, jurou jamais repassar a ninguém.
Somente ela sabe o que fez com que Queremundo passasse a ter essa sina triste
na vida. Também ela, na sua sabedoria da idade, tinha certeza da veracidade
daquelas histórias sempre repetidas de bichos esquisitos surgidos naquele
período santo. E Queremundo não era o primeiro não, pois muitos e muitos já se
transformaram em monstros em meios às escuridões, e mais comumente em
lobisomens.
Lobisomem é um
bicho homem, já se espalhava essa história desde os tempos de antanho. Mas
homem amaldiçoado, pecador por demais nas andanças terrenas, trazendo no destino
a sina dos uivos e arremedos nas noites feias e escuras. Já outros, coitados,
padecentes por aquilo que não deu motivo, pois homens-bichos pelos mistérios
familiares e das crenças que acabam desfavorecendo a vida. Entonce, a pessoa se
torna lobisomem, em triste rito de transformação na noite de lua cheia no
período quaresmal, ou já nasce predestinado à horrenda sina da monstruosa
transformação.
O primeiro,
por ser gente ruim da peste, um “fi do cabrunco” que bate na mãe e dá rasteira
em aleijado, rouba esmola de igreja ou age com desfaçatez ante a fé de um povo.
O segundo, porque nascido em família de sete filhos e não é batizado pelo do
meio. Ou seu irmão ou irmã se torna seu padrinho ou madrinha ou não terá jeito
mesmo, pois em bicho haverá de se tornar nas noites negras e aterradoras. De
qualquer modo, quando chega o tempo da semana santa os bichos aparecem depois
que o negrume se fecha e mais medonhos se tornam perto da meia-noite e daí em
diante. Quando a lua se esconde, o predestinado corre em busca de cama de capim
e ali rola, se atormenta todo, até o bicho aparecer em seu corpo. Quando
levanta e começa a correr em direção às estradas, curvas de caminhos e aos
quintais, já será apenas o lobisomem.
E o coitado do
Queremundo com a triste sina de virar bicho. Mas por quê? Somente a Velha
Totonha sabe dizer. Mas não diz. Coisas do sertão e seus mistérios. Além de ser
o que é, assim um mundo de seca e de sofrimento, o sertão também é uma terra de
mistérios, assombrações e encantamentos, principalmente nas noites negras, nos
negrumes mais escurecidos, nos breus ausentes de lua. Ou de luas de fogo nos
olhos dos lobisomens.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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