Por
Ivanúcia Lopes e Hugo Andrade, G1 RN
Reportagem
percorreu mais de 600 quilômetros por onde passou Virgulino Ferreira da Silva, o
Lampião.
"O povo falava
que Lampião tinha passado por aqui e tinha umas armas guardadas...”. Foi assim
que dona Ilma de Oliveira começou a contar a história que sempre ouviu dos mais
velhos. A senhora de cinquenta e poucos anos mora na casa que serviu de apoio
aos cangaceiros em 10 de junho de 1927. Naquele dia de madrugada Lampião e seu
bando entravam em terras potiguares. Eles chegaram pela Paraíba, cruzaram a
divisa dos estados e apearam-se bem na casa onde dona Ilma criou os três filhos.
A estrutura é quase a mesma: paredes largas, teto alto, tornos de madeira e
caritós para guardar objetos. “Até um tempo desse os familiares do antigo dono
ainda vinha aqui olhar e recordar”, conta.
Foi nessa casa
que Lampião se abrigou ao entrar no RN em 1927 (Foto: Reprodução/Inter TV
Cabugi)
A casa que
fica no sítio baixio, no pé da Serra de Luís Gomes, pertencia a familiares dos
cangaceiros Massilon Leite e Pinga-fogo. Massilon era ‘os olhos e ouvidos’ do
líder pelas bandas do sertão potiguar. Era ele o responsável por guiar os
homens do cangaço no plano de atacar a cidade próspera de Mossoró.
A recepção
durou pouco. Quando amanheceu os cangaceiros se embrenharam na caatinga.
Galoparam por veredas, saquearam fazendas e fizeram prisioneiros. Na Fazenda
Nova, onde hoje é o município de Major Sales, até o padrinho de Massilon,
coronel Joaquim Moreira, foi sequestrado. Na fazenda vizinha de Aroeira, onde
hoje é a cidade de Paraná, eles fizeram mais uma refém: a senhora Maria José
foi levada pelo bando que seguia despistando a polícia e invadindo
propriedades. “A passagem do bando de Lampião pelo RN está qualificada como
banditismo, pois tem casos de assalto, assassinato e uma novidade que até então
não tinha aqui que era o sequestro”, explicou o pesquisador Rostand Medeiros
que já fez o mesmo trajeto de Lampião no RN algumas vezes. “Depois desses ataques
na manhã do dia 10, o bando continuou subindo e praticando todo tipo de
desordem”, lembrou.
Para seguirem
sem alardes os cangaceiros evitavam a passagem por centros urbanos mais
desenvolvidos e desviavam de estradas reais, aquelas por onde passava o gado e
o movimento era maior. O objetivo era evitar confrontos para não desperdiçar
munição e nem perder homens, já que ainda tinha muito caminho até Mossoró.
Mapa mostra o
percurso feito por Lampião em terras potiguares (Foto: Reprodução/Inter TV
Cabugi)
Mais ataques
Na tardinha do
dia 10 de junho de 1927 o grupo chegava na Vila Vitória, território que hoje
pertence ao município de Marcelino Vieira. No povoado ainda é possível
encontrar casas remanescentes da época, e algumas até com sinais da violência
praticada pelo bando. Na casa de dona Maria Emília da Silva, por exemplo, eles
deixaram marcas de boca de fuzil. Era comum bater com as armas na madeira para
assustar os donos da casa. “Eles só foram embora quando viram o retrato de
Padre Cícero. Onde tinha retrato de Padre Cícero ele não fazia nada”, contou.
Na comunidade
vizinha os cangaceiros saquearam a casa onde mora dona Terezinha de Jesus. A
casa é antiga, do ano de 1904, mas ainda mantém a estrutura da época. A
aposentada conta que o pai avistou de longe quando o bando chegava, mas não
teve tempo de fugir. Na casa, eles procuraram joias, armas e dinheiro. “Eles
iam a cavalo e armados. Papai dizia que para montar era um serviço grande
porque estavam pesados com armas”, disse Dona Terezinha ao mostrar o quarto dos
fundos onde ficam guardados os baús alvos dos cangaceiros. “Deixavam as roupas
tudo no chão. Jogavam tudo atrás de dinheiro. Aí dinheiro não tinha. Naquela
época era difícil, né? Mas se achassem podiam levar. Era o que diziam”, contou
dona Terezinha enquanto acendia a lamparina para mostrar os objetos
preservados.
Depoimentos de
testemunhas e vítimas da vila Vitória compõem o processo contra Lampião que
tramitou na Comarca de Pau dos Ferros.
Em 1927 os
pertences dos moradores eram guardados em baús (Foto: Reprodução/Inter TV
Cabugi)
Fogo da
Caiçara: O primeiro combate militar contra Lampião no RN
A notícia de
que o bando estava invadindo propriedades na Vila Vitória mobilizou a força
militar. A polícia juntou homens para enfrentar os cangaceiros. O combate
aconteceu no local onde hoje é o açude de Marcelino Vieira. “Por conta da seca
é possível ver exatamente onde ocorreu o primeiro combate militar contra a
invasão do bando no estado. Essas plantas que estavam cobertas de água ainda
podem testemunhar esse fato”, disse o historiador Romualdo Carneiro ao mostrar
as marcas de tiros que ficaram nos pés de canafístulas.
Quando o
combate começou a caatinga se acinzentou com a queima da pólvora dos rifles e
espingardas dos dois grupos em guerra. O agricultor Pedro Felix ouviu o pai
contar como foi: “Muito tiro. Muito tiro. Chega assombrava o povo que só
pensava em fugir”.
O escritor
Sergio Dantas, conta em seu livro “Lampião e o Rio Grande do Norte: a história
da grande jornada”, que o tiroteio durou trinta minutos. Os cangaceiros, em
maior número e treinados na guerrilha da caatinga, puseram a frota militar ao
recuo. No confronto morreram o soldado José Monteiro de Matos e um cangaceiro
conhecido como Azulão.
Os moradores
da região até hoje se referem ao soldado como sendo um herói. “Quando acabou a
munição os outros foram embora, mas ele disse ‘eu morro, mas não corro!’ e
morreu lutando.” contou seu Pedro ao apontar para os restos de tijolos do
antigo monumento construído em homenagem ao soldado. “Era bem aqui que tinha
uma cruz pra ele, mas quando fizeram o açude levaram lá pro outro lado”,
explicou.
Ainda hoje o
local onde está o monumento recebe visitações. Todo dia 10 de junho a figura do
soldado é homenageada pelos moradores que fazem celebrações. A missa do soldado
virou um evento no povoado.
O antigo
mausoléu mudou de local em 1989 quando o açude foi construído (Foto:
Reprodução/Inter TV Cabugi)
O monumento
atual fica próximo a capela onde é celebrada a tradicional missa do soldado
(Foto: Reprodução/Inter TV Cabugi)
Fim da festa,
não do medo
Não demorou
para o bando chegar ao povoado de Boa Esperança, local onde hoje é o município
de Antônio Martins. O ataque aconteceu em frente a igrejinha da comunidade onde
acontecia a festa de Santo Antônio. “Em vez de recepcionar a banda de música
para a novena do padroeiro os devotos foram surpreendidos com a chegada dos
cangaceiros que bagunçaram as casas, saquearam o comércio, quebraram melancia
na cabeça do dono e acabaram com a festa”, contou o historiador Chagas
Cristovão.
O ataque
aconteceu no pátio dessa capelinha construída em 1901 (Foto: Reprodução/Inter
TV Cabugi)
O principal
comércio da época ficava ao lado da Igrejinha. O prédio ainda guarda as
características de antigamente. Relatos dão conta de que na tarde do ataque o
bando só foi embora depois que uma senhora implorou. “Atendendo ao pedido de
Rosina Maria, que era da mesma terra de Lampião, o bando deixou o vilarejo e
seguiu rumo a Mossoró.”, concluiu o historiador.
Mesmo depois
que os cangaceiros se debandaram o medo permaneceu entre os moradores. Houve
até quem fizesse promessa para não sofrer as maldades do bando. Hoje dá pra
avistar no alto da serra, uma capelinha construída para agradecer a proteção.
Capelinha em
homenagem a São Sebastião fica na Serra de Veneza (Foto: Reprodução/Inter TV
Cabugi)
O massacre
Eram altas
horas da noite do dia 11 de junho quando o bando entrava na Vila de Lucrécia.
Uma das casas invadidas na Fazenda Serrota continua preservada. Na janela estão
as marcas de tiros e nas paredes os retratos daqueles que estiveram frente a
frente com Lampião. “Quem morava aqui eram meus avós Egidio Dias e Donatila
Dias. Eles amarraram Egídio Dias e levaram ele lá pro Caboré.”, contou o
aposentado Raimundo Leite, que mora ao lado da antiga casa dos avós.
Caboré é um
sítio que fica a poucos quilômetros da Fazenda. O prisioneiro teria sido levado
por uma estrada de terra onde hoje é a RN 072. Os cangaceiros pediram dez
contos de reis para poder soltar o fazendeiro. “Um grupo de mais de dez homens
foi até lá pra tentar salvar Egídio, mas foi surpreendido por uma emboscada.
Três homens acabaram mortos.”, relatou a pedagoga Antônia Costa.
No local do
massacre foi construído um monumento em homenagem aos homens. Em Lucrécia eles
são reconhecidos como heróis. “Todo dia 11 de junho tem programação na cidade
em memória de Francisco Canela, Bartolomeu Paulo e Sebastião Trajano”,
enfatizou a pedagoga.
Egídio Dias
fugiu. Permaneceu várias horas no mato. Só depois que o bando foi embora ele
conseguiu voltar para o convívio da família.
O bando seguiu
desafiando a caatinga. Os rastros de destruição ficavam pelas propriedades. Na
manhãzinha do dia 12 eles entraram na Fazenda Campos, onde hoje é território de
Umarizal. Na casa grande, que estava abandonada pelos donos amedrontados, eles
ficaram pouco tempo até pegarem a estrada de novo. Uma marcha que parecia não
ter fim.
Horas depois
eles chegaram ao povoado de São Sebastião, hoje Governador Dix Sept Rosado.
“Meu pai conta que Lampião passou na Estação de Trem e fez muita bagunça. Aí o
povo do sítio era tudo no mato com medo. Meu pai mesmo dormiu muitas noites no
mato, com medo”, relembra seu Maurilio Virgílio, aposentado de 75 anos que hoje
mora pertinho da Estação alvo dos ataques.
A estação foi
alvo dos cangaceiros no povoado de São Sebastião (Foto: Reprodução/Inter TV
Cabugi)
Os cangaceiros
ainda saquearam o comércio, queimaram os vagões do trem e destruíram o
telégrafo. Mas antes disso, um agente da Estação conseguiu mandar uma mensagem
para Mossoró informando que o bando estava a caminho.
Foi o tempo de
Mossoró se preparar para a luta. E a cidade tava mesmo preparada. Quando
receberam o recado que Lampião e seu bando estava por vir, autoridades e outras
personalidades da época se uniram, chamaram os moradores e começaram a montar
as estratégias de defesa. Essas pessoas que venceram o combate 90 anos atrás
são conhecidos como heróis da resistência.
“Foi um feito
heroico de um grupo de cidadãos e cidadãs, que se juntou pra defender a cidade.
Quando eu olho para a resistência ao bando de lampião, eu não vejo uma
individualidade, vejo um ato de cidadania, de coragem que esse grupo frente à
sua vida, à sua cidade”, diz o historiador Lemuel Rodrigues.
Noventa anos
depois, os resistentes já se foram, mas ficou o legado. Ter um herói na família
é motivo de orgulho para muitos mossoroenses. Algumas figuras estavam na linha
de frente e lideraram a defesa da cidade contra o bando de Lampião. Tenente
Laurentino, por exemplo, organizou as trincheiras e montou o plano de
resistência com o apoio dos civis, todos liderados pelo prefeito Rodolfo Fernandes.
De acordo com
os registros da época, o confronto entre os moradores e o bando de lampião
durou cerca de quarenta minutos. Quase 170 homens participaram da defesa da
cidade e ficaram espalhados em 23 trincheiras no centro de Mossoró. Uma delas
teve papel fundamental para o sucesso do combate: a torre da capela de São
Vicente que era o ponto mais alto de Mossoró. Do local, os resistentes tinham
uma visão privilegiada. Três homens ficaram na torre e surpreenderam os
cangaceiros.
“Manoel Felix,
Tel Teófilo e Manoel Alves eram os três homens que estava no Alto da Torre. A
partir daí, eles começaram a informar que os cangaceiros estavam vindo do lado
de cá, na lateral da capela. E nesse momento, eles passam a ser revidados e
deixam de ser atiradores para se tornarem alvos”, explicou o historiador
Kydelmir Dantas.
Os homens que
ficaram lá em cima não foram atingidos, mas as marcas dos tiros ainda
permanecem no alto da torre. A capela que serviu de trincheira e guarda um dos
maiores símbolos do combate de 13 de junho de 1927, dia em que Lampião e seu
bando bateram retirada de Mossoró.
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