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domingo, 19 de novembro de 2017

PÉ DE PAU

*Rangel Alves da Costa

Sou sertanejo. Conheço o sertão como a palma da minha mão. Pego como exemplo o todo existente naquilo onde nasci, e o resultado é conhecer o seu chão, o seu povo, o seu sofrimento, a sua luta, o seu passado e o que certamente acontecerá. E nem precisa exercício de adivinhação. Basta ver a que estágio doloroso o sertão chegou.
Sua vegetação é espelho bem acabado de tudo o que foi e o que será. Sua mataria fala pelo silêncio dos tempos o que já não mais pode falar. Sua caatinga, antes tida como característica maior de sua geografia, já ressente da necessidade de sobrevivência apenas nos livros. Verdade é que a vegetação sertaneja não existe mais, apenas vegeta.
Nem precisa fazer o percurso de séculos, ou lançar o olhar aos tempos mais distantes, para saber o que povoava a floresta matuta e o que não existe mais. Basta ouvir os mais velhos, conhecer um pouco da história de ontem, e assim conhecer os causos da caatinga fechada e assustadora, da mataria chegando aos quintais das moradias, dos bichos rondando as povoações.
Catingueira, aroeira, cedro, bonome, umburana, pau-pereira, umbuzeiro, quipá, araçaizeiro, quixabeira, araticunzeiro, craibreira, juazeiro, jurema, marmeleiro, mulungu, jurubeba, pau-ferro, jequitibá, velame, fedegoso, pau d’alho, angico e muito mais. Tudo isso existia em profusão, tudo fazia parte das entranhas sertanejas. Hoje é até difícil encontrar cachaça perfumada com lasca de árvore nativa.
Não significa que a mata tenha sumido de vez, tenha sido totalmente devastada pela mão do homem. Ainda é possível encontrar propriedades particulares onde a mataria está preservada e continua altiva e imponente. Mas são raros os casos onde haja essa preocupação ambiental e os arvoredos matutos permaneçam vívidos como nos tempos idos.
Contudo, verdade é que não há lugar de preservação ambiental que suporte as ferozes investidas do progresso e a ação desenfreada e violenta dos integrantes dos movimentos sociais que lutam pela posse da terra. Enquanto o progresso vai passando por cima de tudo, os sem terra vão cortando tudo que encontrem pela frente. O que secularmente foi construído pela natureza, em uma semana é completamente destruído pelo homem.

No sertão sergipano do São Francisco, por exemplo, praticamente não há mais mata nativa, não há mais caatinga fechada de pega-de-boi nem de bicho de caça. Aquilo que se tinha como latifúndio, uma imensidão de terra com pouca produtividade para a sua dimensão, guardava em seu seio tarefas e mais tarefas de mataria praticamente intocável, local de moradia de inúmeras espécies da fauna e flora. Mas bastou que os sem terra tomassem conta de tudo que não se avista mais um só pé de pau ainda com vida.
As consequências do desmatamento desenfreado, da derrubada incoerente de toda mataria que seja avistada - e sempre com a desculpa de preparar a terra para o plantio e a criação -, são aquelas já conhecidas por todos. Derrubando a mata, a moradia do animal é destruída; devastando a caatinga, as fontes de água vão secando por causa da secura do solo; destruindo a vegetação, a terra deixa de ter sua proteção natural e a tendência é o clima da região se tornar cada vez mais aquecido.
No estágio que está, onde as estradas e caminhos não são mais ladeados por qualquer vegetação arbustiva, não há outra coisa de se esperar mais adiante senão uma região sertaneja toda transformada em deserto. E certamente descumprida estará a profecia de Antônio, o Conselheiro, que um dia sentenciou que o mar viraria sertão e o sertão viraria mar. Pelo contrário, pois no passo que vai o sertão será deserto, saárico, faminto, sedento.
Já derramei meu lamento quando noutro texto falei do desaparecimento do araçaizeiro, árvore-mãe daquela frutinha doce conhecida como araçá. E não sumiu porque tinha tempo certo de existência, mas porque o homem se deu o direito de devastar seu ambiente. E certamente ainda lamentarei a morte de outras plantas nativas, ainda que já tenha meu pranto derramado por outras que já não existem. E será muito triste ao prantear a morte de toda a caatinga sertaneja.
Pranto que se avizinha, infelizmente. Não sei até quando o velho umbuzeiro vai continuar sombreando as tardes matutas de cantoria; não sei até quando o antigo juazeiro vai continuar imponente no meio da pastagem devastada; não sei até quando a carcomida catingueira vai continuar se curvando lá pelas brenhas escondidas.
Chegará o dia que a missão maior do sertanejo, quando for olhar para trás para reencontrar sua história, será conhecer o que um dia foi conhecido como caatinga. E daí em diante talvez guarde consigo outra missão a cumprir: caminhar sem destino para ver se ainda encontra resquícios da última umburana, da última aroeira, do último angico. Talvez até da última catingueira.
Pois certamente ainda haverá uma árvore nos escondidos do sertão. A última. A árvore de fim de mundo.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com     

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