Benedito Vasconcelos Mendes
Susana Goretti e Benedito Vasconcelos Mendes
Algumas das lembranças de minha
infância, que se mantêm muito viva na minha memória, são as cenas dos rituais
de um velório e enterro típicos sertanejos, que acompanhei quando assisti aos
funerais do pequeno fazendeiro David Bezerra Pinheiro, irmão do vaqueiro Sales,
da Fazenda Aracati. Certa manhã, o Sales foi comunicado que seu irmão mais
novo, David, tinha sofrido um ataque do coração e estava muito doente, em sua
casa na cidade de Miraíma, a 25 quilômetros da Fazenda Aracati. Meu avô vestiu
seu conjunto de mescla azul, com camisa de quatro bolsos, com grandes botões
pretos, calçou seu sapato de cadarço, colocou na cabeça seu chapéu de massa, de
cor cinza e da marca Cury, chamou o Sales, o meu tio Francisco das Chagas
Mendes (Tio Francisquinho) e eu, para irmos, com urgência, no Jeep Willys, ano
1954, cara alta, de propriedade do meu referido tio, até a cidade de Miraíma
para visitar o irmão do Sales. Meu tio Francisquinho ia dirigindo o seu Jeep em
alta velocidade, talvez puxando, em média, 70 quilômetros por hora, na
poeirenta e esburacada estrada carroçal, que unia o Distrito de Caracará à
cidade de Miraíma. Ao chegar na residência do irmão do Sales que estava doente,
recebemos a trágica notícia que o mesmo tinha morrido. Sem perca de tempo, o
Sales começou a comandar o ritual do velório, preparando o defunto para o
enterro. Primeiramente, o Sales formou uma equipe de trabalho formada por um
vizinho de David e por um sobrinho. Em obediência aos costumes e tradições
sertanejos, deram banho no morto, cortaram suas unhas, tiraram a barba,
apararam o bigode e o cabelo, recolheram todos os objetos metálicos que ele
usava, como medalha, cordão de ouro, aliança de casamento, relógio e até
arrancaram, com a ponta de um punhal, um dente canino de ouro, que ele tinha na
boca. A esposa do vizinho, que estava ajudando no preparo do defunto, comprou
no armazém ao lado cerca de três metros e meio de morim (tecido de algodão da
cor branca) e rapidamente confeccionou a mortalha e levou-a para ser vestida no
morto. O Sales encomendou, ao Seu Expedito Carpinteiro, a feitura de um caixão
de pau-branco, revestido de tecido preto, com seis aselhas de ferro batido,
pintadas de preto. O Tião Ferreiro, da Vila de Aracatiaçu, ficou encarregado de
fazer as aselhas de ferro, pintar com tinta a óleo preta e parafusar no caixão.
À noite, com o defunto já dentro do caixão e exposto na sala da frente da
residência, iniciou-se as rezas e o recebimento, pela esposa, filhos, irmãos e
outros familiares, das condolências dos amigos que estavam chegando de
fazendas, vilas e de outras cidades para participar do velório e do enterro no
cemitério local. Ao escurecer, o Sales, em cumprimento a um costume regional,
derramou a água das quartinhas e dos potes de água para beber da casa do
finado. Mandou matar um carneiro, um porco, algumas galinhas caipiras e pediu
para preparar muito arroz vermelho e farofa de torresmo de porco com farinha de
mandioca para os participantes do velório comerem durante a noite. Na bodega ao
lado foram compradas dez garrafas de cachaça serrana, para não faltar reza e
alegria na despedida do seu ente querido. Dona Raimunda, mulher do Sacristão,
acendeu as velas ao redor do caixão e puxou o terço, sendo acompanhada pelas
mulheres presentes. Os homens, no alpendre, bebiam cachaça, conversavam e
faziam algazarra. Mais ou menos às nove horas da noite chegaram, das fazendas e
vilas vizinhas, quatro carpideiras vestidas de preto para chorar o morto. Nos
intervalos das orações fúnebres, entravam o choro e as lamúrias das carpideiras,
que derramavam muitas lágrimas e externavam, em voz alta, suas lamentações.
Estas carpideiras não recebiam dinheiro pelo seu trabalho de elogiar e de
chorar o morto, pois elas faziam por prazer e exigiam apenas os agradecimentos
dos familiares do cadáver. Elas externavam tão bem os sentimentos de tristeza
que as lágrimas pareciam ser o resultado de um grande sofrimento. Durante toda
a sentinela, ao longo da noite, houve muita reza (benditos, ofícios, ladainhas
e incelências) e muito choro das carpideiras, além da alegria dos que bebiam e
comiam no alpendre. Ao amanhecer o dia, o Eufrásio Sacristão foi chamar o Padre
Antônio José para encomendar o corpo e celebrar a Missa de Corpo Presente.
Depois da Santa Missa, o Sales deu ordem para não permitir que nenhum bêbado
pegasse na aselha do caixão, pois podia derrubar o falecido. Ao chegar no Campo
Santo, o Sales e mais três outras pessoas retiraram o defunto do caixão e
inumaram o corpo em contato direto com a terra. O caixão não foi enterrado. O
corpo foi coberto com terra, sem proteção de paredes de alvenaria. Cada
acompanhante do enterro colocava uma mancheia de terra sobre o morto. A cova
era profunda, para evitar que o falecido fosse molestado por cachorros ou
outros animais. O Sales chumbou, em frente a cova, a cruz de madeira contendo o
nome, a data de nascimento e a data do falecimento, pintados de preto, sobre a
cruz de cor branca. Após o enterro, os presentes colocaram pequenas pedras no
pé e sobre os braços da cruz.
Todos estes costumes, crenças e tradições ligados
aos funerais sertanejos são de origem judaica, trazidos pelos Cristãos Novos,
que vieram de Portugal como colonizadores do sertão quente e seco nordestino,
no final do Século XVII e início do Século XVIII.
Curioso também é o enterro de
anjinhos no sertão nordestino. Tive oportunidade de presenciar algumas exéquias
de criancinhas na Vila de Caracará. Diferentemente dos funerais de adultos, no
enterro de criancinha não se chora e sim cria-se um ambiente de alegria e de
festa. Todos querem levar nos braços, por uma certa distância, o caixãozinho
azul com a criancinha morta. O pequeno caixão fica cheio de flores silvestres.
Todos querer colocar, sobre o anjinho, flores e raminhos de plantas regionais.
O cortejo até o Cemitério é feito com muitos cânticos, benditos, incelências,
ofícios e ladainhas, especialmente o Ofício das Almas, que é acompanhado por
rabecas, violas, pífanos de taboca, tambores e maracás. Acredita-se que a
criancinha, por ser inocente e não ter pecados, será recebida no Céu por Maria
Santíssima e São José. Fazem bilhetes endereçados à Nossa Senhora, pedindo
graças e milagres e colocam os mesmos no caixãozinho do anjinho, pois ele é
considerado uma criatura celestial e mensageira dos pedidos das pessoas aqui da
terra para Nossa Senhora e seu filho Jesus Cristo.
Obrigado!
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço Benedito Vasconcelos Mendes
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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